Se Deleuze e Guattari desconstruíram a psicanálise freudiana por meio da categoria do anti-Édipo, a peça O Feio, da Ato Cia. Cênica, busca em outro mito sua razão de ser: encena uma paródia do autocentramento do sujeito na sociedade do espetáculo com um manifesto anti-Narciso. Por meio de transições ágeis entre cenas que remetem ao cinema de massa e tiradas sardônicas em diálogos que provocam identificação e mal-estar, o espetáculo alcança não apenas uma rara coadunação estética entre dramaturgia (do autor alemão contemporâneo Marius von Mayenburg) e encenação, como parece contornar o propalado dilema entre um teatro textual e um teatro físico.
A reinvenção da crítica teatral
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Reflexivo sem derrapar no hermetismo e divertido sem apelar para o humor rasteiro, o trabalho é um sucesso de público. Embora a Sala Álvaro Moreyra, em Porto Alegre, seja um dos espaços mais reduzidos da cidade, inúmeras pessoas ficaram de fora da sessão a que assisti, na mais recente temporada. Fato notável para uma montagem que não é nova: estreou profissionalmente em 2012, oriunda de um trabalho do Departamento de Arte Dramática da UFRGS. Na ocasião, levou o Prêmio Açorianos de melhor espetáculo e ator coadjuvante (Paulo Roberto Farias). Daqui a alguns anos, provavelmente lembraremos de O Feio como um trabalho que revigorou a cena local.
O texto desvela as agruras de Lette (Rossendo Rodrigues), um engenheiro exemplar que desenvolve um conector de alta tensão mas é impedido de divulgá-lo em uma conferência devido à sua feiura. A honra cabe ao assistente Karlmann (Marcelo Mertins). O episódio aciona em Lette um espanto sobre sua própria aparência física similar ao de Vitangelo Moscarda no romance Um, Nenhum e Cem Mil, de Pirandello (adaptado ao teatro pelo ator Cacá Carvalho como Umnenhumcemmil). Ambos, Lette e Moscarda, correm para suas mulheres a fim de confirmar o diagnóstico de imperfeição. Cabe a elas revelar o que seus maridos não haviam percebido. O Feio remete, ainda, a outras obras da literatura e da dramaturgia, como a recriação do humano em Frankenstein, de Mary Shelley, e, mais recentemente, o debate sobre clonagem da peça Um Número, de Caryl Churchill.
O texto opera por meio de uma cadeia de significantes que remete ao falo (o conector, o nariz, a banana que come o Sr. Scheffler, chefe de Lette), metáfora da virilidade do protagonista que se esvazia de potência. Inconsolável, ele procura solucionar o problema por meio de uma cirurgia plástica. O sucesso é tanto que o cirurgião resolve reproduzi-la em outros pacientes, espalhando pela cidade um sem-número de indivíduos com o mesmo rosto. Por trás desse mecanismo reprodutor de identidades, está o ímpeto narcisista de personagens que buscam urgentemente uma essência que não está lá. Encontram, no lugar disso, um espelho. E isso parece bastar.
Cada ator vive dois personagens (à exceção do que interpreta o protagonista), povoando a cena de duplos com o mesmo nome. Paulo Roberto Farias é o chefe Sr. Scheffler e o cirurgião plástico Dr. Scheffler, as duas figuras de autoridade da trama, conferindo-lhes um tom caricatural que remete aos vilões de desenho animado. Danuta Zaghetto é a mulher de Lette e a amante idosa que estabelece uma relação ambiguamente incestuosa com o filho, interpretado por Marcelo Mertins - que, por sua vez, também representa o assistente de Lette. O filho da amante e o assistente são os dois nêmeses do protagonista: obtêm o mesmo rosto por meio de uma cirurgia e disputam as mesmas mulheres. Com máscaras idênticas, o espetáculo realiza, ao mesmo tempo, uma crítica a uma sociedade de aparências que eleva a beleza física ao status de entidade, a denúncia de um modo de produção em série de identidades vazias e o questionamento de uma promessa de felicidade baseada no sexo e no dinheiro.
Mais do que personagens dotados de uma psicologia realista, as figuras de O Feio aproximam-se de arquétipos que habitam a urbe moderna. Lette é o Homem Comum contemporâneo, um sujeito idealista que se revolta quando o assistente boa-pinta é alçado à posição de garoto-propaganda do conector que ele, Lette, desenvolveu. Mas, como um político novato, não lhe resta alternativa senão dobrar-se à lógica corrupta do sistema, sob pena de ser levado pelo vórtice da irrelevância. Assim, aprende tardiamente o lema: não basta ser um criativo, é preciso saber se vender. Essa venda será, no seu caso, metafórica e literal.
Mayenburg (nascido em 1972) comprova a força expressiva da nova dramaturgia alemã, ao lado de autores encenados nos últimos anos na cidade, como Roland Schimmelpfennig (A Noite Árabe e As Quatro Direções do Céu), Marianna Salzmann (Língua Mãe - Mameloschn) e Lutz Hübner (O Coração de um Boxeador), mediados pelo Goethe-Institut Porto Alegre. Parece cada vez mais claro que o advento de uma época pós-dramática esbarrou em um equívoco de expectativa: como bem observou Derrida, deve-se desconfiar da morte do que quer que seja, uma vez que o morto carrega uma eficácia muito específica. Mais do que uma nova episteme que enterra o passado, assistimos da plateia à coexistência entre diferentes formas teatrais e performáticas, dramáticas ou não. Ninguém deveria se surpreender com a volta da dramaturgia porque ela simplesmente nunca foi embora.
No nível da encenação, a direção de Mirah Laline coaduna textualidade e fisicalidade como se fossem yin e yang. As marcações dos atores são meticulosamente calculadas, o que fica claro desde o piso desenhado com o espaço de cada segmento. Os muito bem preparados atores da Ato Cia. Cênica preservam um tom de sátira, exagerando as dicções e os gestos para alcançar, com sucesso, um efeito cômico. Faz parte do espírito da peça esse caráter moleque das atuações, como que denunciando e, ao mesmo tempo, celebrando a jovialidade da companhia.
Em sua trilha sonora, a produção aposta em músicas alemãs de diferentes extrações. Du Hast, do Rammstein, aparece recorrentemente, inclusive como vinheta, pontuando momentos críticos da trama. A faixa que toca antes da sessão, enquanto o público toma seus assentos, é a espirituosa Lightning Strikes, de Klaus Nomi. Antípodas em suas representações do compromisso entre dois amantes (a primeira, cínica; e a segunda, romântica), as faixas evocam, uma pelo avesso da outra, as turbulências do amor e das relações pessoais em tempos de crise.
Exemplar em seu propósito, O Feio desmonta, peça por peça, os mecanismos de produção em série de felicidade que ilude o sujeito contemporâneo para expor a perversidade de sua lógica. O que move esse mecanismo homogeneizador é o medo da diferença. No desvio do objeto do desejo, resta o fetiche.
Crítica
Opinião: Peça "O Feio" critica a mercantilização de identidades
Montagem da Ato Cia. Cênica para o texto de Marius von Mayenburg teve nova temporada em Porto Alegre
Fábio Prikladnicki
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