Dia desses, em aula, dizia aos meus alunos para se lançarem às paixões artísticas sem medo, seguros de que a grande música, por exemplo, não é aquela que resiste à centésima audição, mas a que continua espetacular na centésima primeira. E que daqui a 10 anos soará ainda melhor. Penso em God Only Knows, dos Beach Boys, em O Sol Nascerá, de Cartola. E isso não é desconsiderar as demais composições do sambista da Mangueira e da banda da Califórnia, é perceber que algumas de suas canções têm um poder maior de permanência. (Poderíamos ter optado por Good Vibrations ou O Mundo É um Moinho, nomeie sua paixão perene, grandes artistas possibilitam isso.)
Mas antes da permanência, a vertigem. O delicioso abismo dos apaixonados a ouvir discografias inteiras (ou apenas uma música em repetição), a ler bibliografias completas, os versos todos de Wislawa Szymborska, amantes furiosos, incapazes de ceder senão à vertigem artística - para eles a vida real é uma reles ladra das horas de prazer -, gente como meu amigo Marcello Giulian, que leu todos os livros do Vargas Llosa em sequência, feito um tarado tomado de beatitude.
E só depois a eleição. Porque o amor pela arte é uma paixão revivida quando já não se nos consome o vício. É um sedimentar dessas paixões, o modo como aprendemos a reconhecer o que sobrevive das obras assim que se encerra a primeira onda de afeto na praia do tempo. E é quando geralmente percebemos que entre nossas leituras está o que a tradição elegeu, As Mil e uma Noites, Dom Quixote, Crime e Castigo, Anna Kariênina, não porque um conselho de sábios o decidira, mas porque leitores e leitoras antes de nós perceberam que estavam ali formas perfeitas de conhecimento interior e exterior, para além de idiomas e eras.
E é por isso que, talvez como na vida, não haverá paixão desperdiçada. As paixões ultrapassadas seguirão tendo aquele sabor juvenil dos equívocos do colégio, das festas escuras da faculdade. Mesmo as paixões erradas hão de nos fazer rir o riso humano, nunca o de deboche, por termos experimentado o engano que só experimenta quem se deixou arrebatar ao menos uma vez.