Na esteira do Maio de 1968, começou a ser tirado na França o véu sobre um período histórico que ainda hoje rende acalorados debates naquele país: a ocupação nazista na II Guerra, entre 1940 e 1944. Com mais de quatro horas de duração, o documentário A Tristeza e a Piedade, apresentado por Marcel Ophüls em 1969 e que ganha reedição no Brasil, teve o efeito de uma bomba ao ser abraçado pela geração que passava a conhecer uma outra versão da história que embalou o imaginário de seus pais. O mito da resistência heroica a Hitler era contestado pelo filme com fatos tão irrefutáveis quanto constrangedores para a autoestima nacional.
Nascido na Alemanha e naturalizado francês, Marcel, filho do grande diretor Max Ophüls, entrevistou mais de 40 pessoas, de camponeses a aristocratas, de políticos franceses a ex-militares alemães. Costurando os depoimentos com imagens de arquivo, mostrou em A Tristeza e a Piedade que, por trás da surpreendentemente rápida capitulação francesa, havia um terreno propício para a marcha dos alemães em direção ao simbólico desfile de Hitler pelas ruas de Paris.
Na França de então, germinavam divisões políticas profundas entre esquerda e direita, xenofobia e antissemitismo. Tão logo assentou-se a ocupação, muitos franceses ajudaram os nazistas na perseguição a judeus e comunistas. Era voz corrente em setores conservadores da sociedade francesa que, se fosse ficar sob garrão estrangeiro, o de Hitler era preferível ao de Stalin. Ou, num clima que antevia uma fratricida guerra civil: era preferível se dobrar ao inimigo externo do que ao oponente vizinho, mesmo que o preço a pagar fosse trocar uma democracia republicana por um estado totalitário, como sublinha o ensaio O Retorno do Reprimido, de Naomi Greene, professora da Universidade da Califórnia, que está no livreto que acompanha o DVD.
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A Tristeza e A Piedade foi exibido com grande impacto primeiro na TV alemã, ainda em 1969. Em 1971, o documentário ganhou uma estreia discreta nos cinemas da França, onde só teve exibição permitida na televisão 10 anos depois, quando o governo socialista de François Miterrand assumiu o poder. Nesse período, foi alvo de defesas apaixonadas e ataques ferozes. Ninguém ficou indiferente aos exemplos de indiferença, mesquinhez, covardia e colaboração ativa ou passiva em atos que levaram à morte milhares de pessoas.
A nova edição do documentário em DVD no Brasil, pelo Instituto Moreira Salles (IMS), tem como extra uma longa entrevista de Marcel Ophüls à rede de TV americana CBS, em 1972, na qual fala dos bastidores da produção e da polêmica que ela provocou. Em seu mencionado ensaio, Naomi Greene também analisa A Tristeza e a Piedade, entre outros aspectos, espelhando-o em dois clássicos do cinema francês que abordam o colaboracionismo: Lacombe Lucien (1974), de Louis Malle, e O Último Metrô (1980), de François Truffaut.
O texto da professora lembra ainda o trabalho de historiadores que identificaram, alguns ainda no calor dos acontecimentos, o traumático sentimento que a ocupação nazista provocou na França - e segue provocando, como se viu no julgamento, em 1997, de Maurice Papon, político acusado de facilitar a deportação de milhares de judeus franceses aos campos de extermínio quando servia ao governo de Vichy, zona "livre" da ocupação militar alemã permitida aos franceses sob ordens do III Reich. É um tema, ressalta o ensaio, que impõe em uns a necessidade de saber e a outros o desejo de negar.
A Tristeza e a Piedade
De Marcel Ophuls.
Documentário, França/Suíça/Alemanha, 1969, 251min.
Lançamento em DVD duplo pelo IMS, R$ 49,90.
Cotação: 5/5
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Trailer de A Tristeza e a Piedade (sem legendas em português)
Outros documentários fundamentais sobre a II Guerra
Noite e Neblina (1955)
Clássico curta-metragem em que o diretor francês Alain Resnais sintetiza em potentes 32 minutos o ainda recente horror do Holocausto. As imagens que ilustram a narração de um texto do poeta Jean Cayrol, sobrevivente dos campos de concentração, sublinham um libelo humanista e um alerta: lembrar e compreender tamanha infâmia é fundamental para que ela não se repita. Onde ver: disponível em DVD.
Shoah (1985)
Considerado o mais importante registro já feito sobre o Holocausto, o documentário do diretor francês Claude Lanzmann reúne em suas nove horas de duração - e sem exibir imagens de arquivo - depoimentos de sobreviventes dos campos de extermínio, algozes alemães e testemunhas que tiveram participação direta e indireta no genocídio de milhões de judeus, durante a II Guerra. Onde ver: disponível em DVD.
O Inimigo do Meu Inimigo (2007)
Documentarista ganhador do Oscar com Munique, 1972: Um Dia em Setembro (1999), o escocês Kevin Macdonald tem como personagem nesta produção o alemão Klaus Barbie, oficial nazista da Gestapo que ficou conhecido como o Açougueiro de Lyon. A despeito das atrocidades que cometeu na França ocupada, Barbie, após a II Guerra, trabalhou como espião para os EUA - descoberto, foi condenado nos anos 1980 à prisão perpétua por crimes contra a humanidade. Onde ver: disponível na Netflix.
A Noite Chegará (2014)
Em 1945, um projeto do governo britânico para revelar ao mundo o genocídio praticado nos campos de concentração nazistas reuniu cineastas como Sidney Bernstein e Alfred Hitchcock. O diretor e produtor britânico Andre Singer reuniu trechos desse material de grande impacto, nunca exibido nos cinemas, e os costurou com depoimentos atuais de sobreviventes. Onde ver: disponível no serviço de streaming Philos TV (philos.tv).