Tive uma namorada que temia à morte as estradas sinuosas. Um temor sério. Nas vezes em que a levei à sua cidade natal na Serra, a cada placa com uma seta inclinada, ela se agarrava ao banco, como se disso lhe dependesse a vida. Eu ria, ela resmungava, eu ria, ela apertava os dentes, e então eu a acusava de trair a coragem das sucessivas gerações de polacos que singraram campos e o mundo para que aquelas coxas estivessem ali na segurança (aparente) do banco. Houvesse mais oportunidades, teria virado um desses quadros de humor permanente que a intimidade funda.
A diversão de tirar alguém do sério. Quando ela acaba? Por que razão ela termina? O que fazer quando deixamos de rir, quando os humores se desencontram?
Gosto de acreditar que brincar é para os adultos uma forma complementar de erotismo. Não à toa Macunaíma "brincava" com as mulheres nas matas modernistas. Brincar é subverter o medo, as intenções sérias, os relacionamentos sérios. Claro, concedo que para ela minha atuação na estrada fosse apenas irritante. Admito também que minhas brincadeiras nem sempre primaram por um timing adequado.
Até a metade dos 30, a seriedade consumiu boa parte de meus dias, dos quais me sobraram apenas sisudas constituições, que não voltei a abrir. Demorei quase meia vida para descobrir que, depois que todas as coisas passam, costuma restar das coisas o seu lado mais leve, folclórico, cômico, espirituoso.
Assim para as coisas, assim para as pessoas. Imaginem um funeral sem a lembrança das comédias do finado.
As coisas sérias, que parecem tão importantes, os compromissos inadiáveis, as certezas cotidianas decantam-se feito chumbo, até se incorporar ao chão. De tudo, sobrevivem os gestos dignos de graça, feito a mão dela crispada no banco a cada curva, nosso legado jocoso. Por isso, no pequeno santuário das relações desfeitas, não há mágoas, deitadas que foram ao solo para que servissem de adubo à relva que espera a chegada, com sua paciência vegetal, de uma nova brincadeira permanente.