No dia em que Shostakovich morreu, em agosto de 1975, eu estava em Rio Grande e, exatos 40 anos depois, só lembro a umidade daquela cidade. O meu curso de história da música ia a pleno vapor no Conservatório local e, por ironia, a morte veio bem a calhar. Naquelas lonjuras do tempo, se via e ouvia a música do século passado com outras paciências. Então, entre os compositores russos, Dmitri Shostakovich era o mais pobrezinho. Nem tão vistoso quanto Stravinsky, muito menos agressivo do que Prokofiev.
Num curso de história da música como o meu, havia até certo constrangimento em mencionar Shostakovich. Eu só falava nele porque tinha me apaixonado pela trilha sonora que ele tinha feito para Hamlet de Kosintsev, um Shakespeare em russo. E com música espetacular! O senso comum, no entanto, era o de um Shostakovich muito tradicional, excessivamente soviético. As suas sinfonias e quartetos pareciam não viajar bem, logo perdiam alguma coisa ao sair de Moscou ou (naquele tempo) Leningrado.
De 1975 para cá, a Rússia se reinventou e Shostakovich foi reinventado mais ainda. De todos os compositores do século, provavelmente ele seja o que mais tenha sido reavaliado, estudado, tocado, esquadrinhado. Com resultados mais do que positivos: melhor morto do que vivo, ele ultrapassou seus colegas russos como presença constante em concertos, recitais e gravações. Só com registros das 15 sinfonias se poderia construir uma discoteca inteira. Volumosa.
Em 1979, um musicólogo russo publicou o que ele alegava serem as memórias de Shostakovich, com visões ideológicas ácidas bem diferentes das que se conhecia até então. Verdadeiras ou não, as revelações mais ajudaram do que atrapalharam, pois até hoje se discute quais teriam sido realmente as relações do compositor com o regime e, principalmente, sua relação com Stalin.
Quanto a Stalin, suas ideias sobre a música de Shostakovich eram muito claras: num edital no Pravda, em 1936, lá está o seu julgamento, sem rodeios: "lama ao invés de música".