- Sou um cafetão! Sou um cafetão!
Embora as palavras venham de uma fonte pouco provável, não há como negar que foram pronunciadas por Jerry Seinfeld, o tom da voz, animado, subindo e descendo feito um alarme de carro.
Trabalhando na ilha de edição do Brill Building, no início de maio, ele dava os toques finais em um novo episódio de sua série online, Comedians in Cars Getting Coffee, gravando o áudio para um segmento em que ele e Steve Harvey saem por Chicago passeando em um Chevrolet Bel Air 1957 conversível.
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Como seu show de stand-up e o consagrado sitcom no NBC, Seinfeld (1989-1998), o novo projeto - cuja nova temporada estreou em 3 de junho no canal digital da Sony, o Crackle - mexe com a obsessão de Seinfeld com as minúcias e sua tendência de encarar os problemas como quebra-cabeças.
- Ao colocar as peças nos lugares certos, você consegue uma coisa que, na verdade, não existia. Era uma quase coisa - diz ele sobre a série na internet.
Comedians in Cars Getting Coffee, que em segmentos rápidos acompanha o bate-papo de Seinfeld com colegas e amigos como Tina Fey, Sarah Jessica Parker e Jon Stewart, também ajudou seu criador a se encaixar no mundo pós-internet e uma cultura popular que poderiam facilmente seguir adiante sem ele.
Aos 61 anos, Seinfeld chegou ao ponto em que poderia muito bem apenas se locupletar com o inesperado valor de suas glórias passadas: no mês que vem, o Hulu incluirá todas as nove temporadas de Seinfeld em seu acervo para competir com concorrentes como Amazon e Netflix. O negócio, que teria saído por algo entre US$ 130 milhões e US$ 180 milhões, o deixará ainda mais rico, já que ele é um dos criadores e receberá a parte que lhe cabe nos lucros.
Em vez disso, porém, assumiu o que poderia ser somente um projeto paralelo bem recebido para transformá-lo em uma verdadeira usina de força quase secreta. Seus episódios foram reproduzidos quase 100 milhões de vezes desde a estreia, em 2012, e agora a série é uma das principais apostas da Sony para transformar o Crackle em um peso-pesado na briga pelo conteúdo online.
Embora fosse esperado que a geração de comediantes mais jovens, que cresceu com a internet - como Aziz Ansari, Chris Hardwick ou Amy Schumer - se adaptasse a ela naturalmente, Seinfeld não sabe dizer bem por que já bombava com conteúdo digital quando seus colegas - como David Letterman ou Chris Rock - continuavam ausentes.
E mesmo lançando mão dos recursos cômicos que usa no stand-up, Seinfeld sabe que sua carreira no palco e na TV não garante o sucesso nesse novo campo.
- A internet é o meio mais implacável de todos; mesmo num clube, o público não levanta todo de uma vez e vai embora, mas online isso pode acontecer, sim.
E se os detratores quiserem menosprezar seu projeto do coração qualificando-o de vaidade pura, o comediante não se sente nem um pouco ofendido em assumir a descrição.
- O que tem de errado com isso? Não é o que a gente devia fazer? Se não existir vaidade, o showbiz já era - dispara.
O projeto já foi criticado pela ausência de convidados que não sejam homens brancos e pela incapacidade de identificação com aqueles que não são tão bem-sucedidos como seu criador. Porém, um vídeo promocional que Seinfeld ajudou a montar e editar resume o espírito excêntrico e sem afobação da atração. Em cortes rápidos, ao som de um jazz animado, ele aparece em vários restaurantes e cafeterias crivando convidados como Stephen Colbert, Jim Carrey e a ex-colega de elenco, Julia Louis-Dreyfus, com perguntas e observações absurdas. ("Que tipo de cueca você usa?", ou "Já reparou que agora dá para escolher o tipo de polpa do suco de laranja?").
Steve Mosko, presidente da Sony Pictures Television, disse em entrevista separada que a série "é autêntica e o público sabe disso, gostando ou não. É a cara do Jerry".
Seinfeld não é nem tecnofóbico, nem geek radical. Usa o Twitter de vez em quando, mas não ouve podcasts. Admirou o Apple Watch do cliente da mesa ao lado da sua no restaurante, mas disse preferir relógios mais tradicionais. ("Preciso ver as engrenagens", justificou.)
Seinfeld conta que, há alguns anos, quando começou a vender a ideia de Comedians in Cars Getting Coffee para sites como Hulu, Netflix e Youtube, ouviu várias vezes, de várias fontes, que ninguém assiste a um vídeo que tenha mais de dois minutos. Tendo em mente episódios de dez a 15 minutos de duração, ele titubeou.
- Quanto menos você souber sobre um campo, mais chances de sucesso terá. A coragem que a ignorância lhe dá é a melhor abordagem para um novo desafio.
Foi bem recebido na Sony que, aliás, é a distribuidora de Seinfeld e se mostrou disposta a dar a autonomia que o comediante queria. Mas por que Seinfeld quer marcar presença na rede? Essa pergunta é mais capciosa do que parece. Amigos do comediante dizem que uma parte dele pede a reinvenção contínua e experiências novas.
- Desde que o conheço, ele vai complicando a própria vida a níveis inimagináveis, até ela o deixar de joelhos - conta James Spader, que conheceu Seinfeld nos anos 90.
E acrescenta:
- Não resiste à curiosidade e ao entusiasmo por coisas novas.
Embora recentemente tenha participado do filme de Chris Rock No Auge da Fama (2014), da série de Louis C.K., Louie (2012, 2014) e do último programa Late Show, de David Letterman, em aparições que brincaram com sua persona superconfiante, ele sabe que manter a relevância cultural é uma busca contínua. E diz:
- Nessa minha linha de trabalho, a aceitação do público é o que vale. Faz tempo que isso aconteceu comigo - admite.
Mesmo depois de fechado o acordo para a execução de Comedians in Cars, Seinfeld não sabia se a Sony o fez porque estava mesmo interessada em sua ideia ou se queria apenas mantê-lo em seu acervo.
- Quem se importa? Mesmo que fosse só eu, também mereço, ora essa - comenta.
Porém, quando concluiu os primeiros episódios, Seinfeld - que confessa abordar toda e qualquer carreira no showbiz de maneira "pouco sentimental, quase matemática, com relevância" - percebeu que poderia deixar o público cansado.
- Quando o pessoal sabe quanto você ganha, quanto lucra, é inevitável que acabe meio, "Mas o que quer agora? Quanto dinheiro vai levar desta vez? Quanto espaço vai ocupar?" quando sai com um projeto novo. Aí pensei em literalmente dar o trabalho para o público, de graça (o patrocínio da Acura resolveu o problema).
O Crackle, que também oferece downloads de filmes e outras séries de TV, vê o projeto como uma base sobre a qual pode desenvolver a identidade de sua marca e, a partir daí, competir com outros canais online e de cabo - e já deu a partida para novos filmes e séries com astros como Bryan Cranston, Dennis Quaid e David Spade.
- O programa não faz sucesso só porque é qualquer coisa inventada pelo Jerry, mas sim porque é resultado de anos de experiência e tem um estilo que só poderia ter sido criado por ele - afirma Eric Berger, diretor geral do Crackle, em entrevista separada.
Para Seinfeld, uma recompensa é ser bombardeado com os dados ridiculamente detalhados que só a internet pode fornecer sobre sua série - e observou, por exemplo, que vem aumentando o número de TVs tradicionais que a assistem, através de dispositivos como Roku ou Apple TV e que é especialmente popular com o público entre 25-34 anos, ou seja, muitos ainda nem tinham nascido quando Seinfeld estreou.
Ao se descobrir em um ritmo novo e tendo a flexibilidade de fazer novos episódios de Comedians in Cars quando bem entender, Seinfeld diz que sabe exatamente como planeja usar a nova liberdade.
- Trabalhar alguma coisa até exaurir o tema pode ser divertido. Senti falta disso. Quero ver até onde posso ir e até onde o público aguenta - finaliza.
*The New York Times