Um dos curiosos paradoxos da trajetória de grandes ídolos do rock é como, para alguns deles, o sonho de fama e fortuna alimentado na adolescência pode virar um fardo existencial justamente quando se fica um adulto famoso e rico. Ao enfiar uma bala de espingarda na cabeça no dia 5 de abril de 1994 , Kurt Cobain encontrou o fim que pareceu perseguir ao longo de sua turbulenta e breve vida de 27 anos. E que nem mesmo o nascimento da filha, Frances Bean Cobain, conseguiu arrefecer.
E é Frances, hoje com 22 anos e avessa à exposição pública, que abraçou como produtora-executiva um emocionante inventário da vida do pai, no documentário Cobain: Montage of Heck. Com direção de Brett Morgen, o filme apresenta um retrato íntimo do artista a partir de registros domésticos até então inéditos. O filme produzido pelo canal HBO foi apresentado no começo do ano em festivais como os de Sundance e Berlim, ganhou lançamento limitado nos cinemas de alguns países e estreou em maio na TV americana. No Brasil, pode ser assistido em duas sessões promovidas pela rede Cinemark - em Porto Alegre, nesta quinta-feira, às 21h, e no sábado, às 22h30min, na sala 1 do BarraShopping.
O recorte mais interessante, por ser aquele não abordado em outras produções sobre Cobain e o Nirvana, banda com a qual ele apresentou ao mundo o ruidoso furacão grunge, vem dos filmes caseiros e diários que mostram a infância e a juventude do encantador garoto loirinho que iluminou a vida de uma família de classe média na cidade de Aberdeen, no Estado de Washington.
Aos poucos, a alegre rotina dá lugar a um ambiente tensionado pela separação dos pais de Cobain, menino hiperativo a quem acalmavam com remédios. O garoto fica rolando de casa em casa, vive na escola seu inferno particular, descobre as drogas e canaliza seu isolamento e revolta na criação artística, escrevendo e desenhando compulsivamente e, depois, iluminado pelo punk rock, empunhado uma guitarra.
Esse material torna palpável a figura que acabaria soterrada pela explosão do Nirvana no começo dos anos 1990. Nesse instante, o jovem que queria "fazer sucesso e ter uma vida confortável", que dedicava-se a maratonas de ensaio trancado em seu quarto, que calculava os movimentos da carreira como um empresário experiente, sucumbiu emocionalmente ao assédio de público e imprensa. Cobain revela o filme, tinha enorme dificuldade para se expressar de outra forma que não fosse cantando suas dores e angústias. Dar entrevistas, para ele, tornou-se uma provação.
Morgen complementa as imagens que faltam com o uso inventivo da segmentos com animação, que recriam momentos como a primeira transa, a tentativa de suicídio na adolescência e dão movimento aos rabiscos de seus cadernos
Os depoimentos são econômicos. Falam os pais de Kurt, Don e Wendy, sua ex-mulher, Courtney Love, o ex-parceiro de Nirvana Krist Novoselic e a ex-namorada Tracey Marander - o título do documentário faz referência à fita cassete que Cobain deu aTracy com uma colagem de experimentações sonoras e trechos com músicas de, entre outros, James Brown, Beatles, Led Zeppelin e Frank Zappa. Entre os registros garimpados por Morgen, aliás, estão gravações de Cobain em seu estúdio caseiro, que revelam faixas como uma bela versão para And I Love Her, dos Beatles.
A presença familiar no documentário, porém, não imprime no filme o registro chapa-branca. Tanto as falas da mãe, evocando sua presença determinante na vida artística do filho, quanto a do pai, lembrando as faíscas do relacionamento rompido, parecem contradizer os efeitos que a ausência de ambos provocou em Cobain. Também é emblemática a presença de Courtney, que, de esperança de estabilidade emocional, mostrou-se combustível para a instabilidade movida a heroína
Cobain chegou a acreditar que a paternidade colocaria sua vida nos trilhos, que daria a Frances a felicidade que não teve. Mas como se vê nas cenas dele drogado e em estado de torpor, com a filha no colo, essa foi uma batalha perdida que não conseguiu - ou não quis - reconhecer.
Notas de bastidores
- Lançado em 24 de setembro de 1991, Nevermind, segundo disco do Nirvana, detonou o fenômeno grunge. Faixas como Smells Like Teen Spirit e Come as You Are levaram o álbum a vender mais de 30 milhões de cópias no mundo.
- Cobain: Montage of Heck mostra os bastidores da gravação do icônico videoclipe de Smells Like Teen Spirit, destacando a concepção visual planejada por Cobain e substituindo a trilha original do Nirvana por uma versão da Scala & Kolacny Brothers, coral feminino belga conhecido por suas releituras de sucessos pop.
- O documentário destaca a passagem do Nirvana pelo Brasil em janeiro de 1993, como atração do festival Hollywood Rock, em São Paulo e no Rio. No show de São Paulo, um Cobain drogadaço e bêbado diante de 110 mil pessoas tornou as músicas do grupo irreconhecíveis e tocou covers inusitados. No Rio, mais controlado, limitou-se a cuspir nas câmeras de TV e a simular uma masturbação com uma delas.
- Gravado em novembro de 1993 e exibido pela MTV em dezembro, o especial Nirvana Unplugged in New York foi lançado em CD em novembro de 1994, após a morte de Cobain.
- Fundador da banda The Melvins e amigo de Cobain, Buzz Osborne foi uma das pessoas próximas do músico que não gostaram do documentário de Brett Morgen. Disse ele em um artigo que passagens como a primeira transa de Cobain ter sido com uma garota obesa e problemática e a tentativa de suicídio em uma linha de trem são falsas. Osborne também afirmou que as histórias contadas por Courtney Love são "elásticas".
- Brett Morgen é um reconhecido documentarista americano. Concorreu ao Oscar com On the Ropes (1999), sobre o universo do boxe, assinou o referencial O Show Não Pode Parar (2002), que tem como personagem o lendário produtor de Hollywood Robert Evans - ambos realizados em parceria com Nanette Burstein - e contou a história dos Rolling Stones em Crossfire Hurricane (2012).
- Após a morte de Cobain, em 5 de abril de 1994, teorias conspiratórias surgiram comentando um possível assassinato do ídolo. A polícia encerrou o caso como suicídio.
Cobain - Montage of Heck
De Brett Morgen.
Documentário, EUA, 2015, 145min, 14 anos.
Sessões no Cinemark BarraShopping Sul na quinta-feira, às 21h, e no sábado, às 22h30min.
Cotação: muito bom.
Ouça alguns sucessos do Nirvana