Sentado em uma sala vazia, com uma porta entreaberta atrás de si, Eduardo Coutinho (1933 - 2014) conversa com alguém na abertura de Últimas Conversas (2015). Para sua interlocutora, a montadora Jordana Berg, um dos maiores documentaristas do mundo desabafa: "Perdi momentaneamente ou para sempre a ligação com o mundo que eu um dia já tive. Daí, é o fim". A aparente capitulação foi registrada no meio das filmagens do documentário que o diretor estava fazendo com estudantes do Ensino Médio de escolas públicas do Rio de Janeiro. "É melhor não fazer do que fazer um filme de 70 minutos que você não acredita", decreta o cineasta na sessão de análise improvisada com sua assistente-psicanalista.
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Felizmente, o pessimismo do realizador de obras-primas como Cabra Marcado para Morrer e Jogo de Cena (leia mais abaixo) não impediu a realização do filme-testamento que entra em cartaz nesta quinta-feira na programação do Espaço Itaú, em Porto Alegre. Nem mesmo a morte de Coutinho antes da finalização de Últimas Conversas, em fevereiro de 2014 - assassinado pelo próprio filho esquizofrênico -, cancelou a produção: Jordana e o diretor e produtor João Moreira Salles debruçaram-se sobre o material bruto de 32 horas de conversas com adolescentes, concluindo aquele que seria o 14º longa-metragem do decano do cinema documental brasileiro.
- Quando a gente se vê no papel de terminar um filme que foi pensado e filmado por outra pessoa, são várias as dúvidas que surgem. A principal delas é a seguinte: que filme fazer? Aquele que a gente presume que o Coutinho teria feito ou aquele que podemos fazer, desde o nosso ponto de vista, a partir do material filmado por ele? - questiona-se Salles em entrevista por e-mail a Zero Hora.
O resultado desse trabalho conjunto diz tanto sobre o universo observado - o imaginário da juventude brasileira das classes populares - quanto a respeito do observador. Célebre por seu "cinema de conversação", capaz de encetar diálogos ricos em filmes como Santo Forte, Babilônia 2000 e Edifício Master, Coutinho emperra em Últimas Conversas: o octogenário entrevistador mostra-se a princípio reativo diante dos garotos e garotas à sua frente, pouco à vontade com o dispositivo que usualmente utilizava com destreza para conectar-se com seus personagens. "A gente tá fazendo um filme aqui que deve dar errado. Tudo o que eu tô fazendo agora dá errado", diz Coutinho de saída para um de seus jovens entrevistados. Aos poucos, porém, apesar dessa resistência, a conexão se estabelece - não sem ruídos. Com uma franqueza desconcertante inclusive para o diretor, os meninos e meninas revelam diante da câmera seus sonhos e frustrações, as lembranças domésticas doloridas, as dificuldades para continuar estudando e melhorar de vida.
- Por estar falando com jovens, a experiência e a memória da experiência estão muito próximas, de modo que os sedimentos de ficção ainda não tiveram tempo de se acumular. O que se investiga aqui é se o cinema dele é capaz de sobreviver a mais essa supressão - explica Salles.
A pré-produção do longa visitou 12 escolas cariocas e entrevistou ao todo 97 adolescentes. Desses, 28 foram filmados por Coutinho, dos quais nove entraram no corte final. Filme de abertura da 20ª edição do festival de documentários É Tudo Verdade, Últimas Conversas surgiu em meio a uma série de impasses e dúvidas, após o abandono de outros dois projetos: Reencontros, em que Coutinho voltaria a entrevistar personagens de filmes anteriores, e Palavra, uma brincadeira com a leitura de textos de diversos tipos, como bulas de remédio e panfletos. Havia também o desejo de rodar um filme com crianças - mas que, na opinião de várias pessoas, seria impossível de realizar, em função da necessidade de aprovação dos pais para as entrevistas. O mestre tinha algum projeto em mente para depois de Últimas Conversas?
- Fazer um filme sobre absolutamente nada - revela o discípulo Salles.
Últimas Conversas
De Eduardo Coutinho
Documentário, Brasil, 2015, 85 minutos.
Classificação: livre.
Estreia nesta quinta-feira em Porto Alegre.
Cotação: ótimo.
COUTINHO ESSENCIAL
Quatro filmes fundamentais do diretor
Cabra Marcado para Morrer (1984) - Clássico absoluto do documentário brasileiro, a obra é o resultado de um impasse: 17 anos depois de interrompidas as filmagens de um longa semidocumental sobre a vida de um líder camponês assassinado em 1962, Coutinho retoma a história a partir do destino da viúva e dos filhos de João Pedro Teixeira. A reflexão sobre o que mudou nesse tempo todo, na trajetória dos familiares e do diretor, além dos dilemas relativos à própria realização do filme, acabam esboçando um sensível painel sobre a instabilidade da vida e do cinema.
Santo Forte (1999) - A relação do brasileiro com a religião e o sobrenatural é o ponto de partida para Coutinho extrair de seus entrevistados relatos sobre o cotidiano, memórias, medos e sonhos. Filmando entre uma missa campal do Papa João Paulo II no Aterro do Flamengo e a comemoração do Natal, o realizador dá a palavra para católicos, umbandistas e evangélicos de uma favela carioca.
Edifício Master (2002) - Conhecido por títulos que retratam o imaginário popular brasileiro, Coutinho colocou-se um desafio inédito ao abrir espaço para os moradores de um prédio de classe média carioca. O resultado de três meses de convivência com o edifício de cerca de 500 habitantes em Copacabana é um documentário sobre as variadas formas de solidão das grandes cidades, compilando depoimentos pungentes e antológicos - como o do aposentado que se emociona cantando a música My Way.
Jogo de Cena (2006) - Coutinho inovaria outra vez em seu 10º longa. O documentarista reuniu depoimentos de mulheres comuns, que também são reinterpretados por atrizes famosas e desconhecidas - e a brincadeira é embaralhar essas falas a ponto de o espectador não saber quem é a verdadeira "dona da história" nem diferenciar verdade de invenção. Jogo de Cena interroga-se o tempo todo: quem é personagem e quem é atriz? Aquele relato da atriz pertence a outra pessoa ou é dela própria? Quem contou melhor a história, a personagem ou a atriz? "Diante da câmera, todo mundo fala a verdade mentindo", sentenciava o mestre.