Na coluna que marcou meu retorno a ZH, exatos dois anos atrás, um dos destaques do texto "Tem mais samba em Porto Alegre" era Caio Martinez. Tempos depois, comentei o disco Registro das Coisas, em que ele interpretava sambas do médico e compositor João Carlos Biernat e que recebeu cinco indicações ao Prêmio Açorianos. Embora também componha outros gêneros, participando de festivais pelo país, Caio é um sambista de nascimento, como afirma seu primeiro álbum solo, Coisas Nossas - show de lançamento domingo, na Esplanada da Restinga, às 17h, integrando a programação da Semana de Porto Alegre. Ele cresceu ouvindo Cartola, Noel, Nelson Cavaquinho e Paulinho da Viola no toca-discos do pai. Bebendo na fonte de mestres como esses, construiu sua trilha no chamado samba de raiz.
Paralelamente ao talento e à bela voz, um dos diferenciais de Caio é o estudo do samba, coisa que faz desde antes do tempo em que integrava o grupo Feijoada Completa. Transita com naturalidade pelos temas tradicionais do gênero, o malandro, a boemia, o morro, a crítica social, em meio a comentários humorados ou tristes sobre o cotidiano. Trecho de Voando Baixo: "Eu andava de sopa de um lado pro outro/ Era de vento em popa, boteco em boteco/ Era um teleco-teleco, malandro com asa/ Não parava em casa ia voando baixo". Outra, Quem Avisa Amigo É: "Carrego no peito um inimigo/ Estou de mal com o meu coração/ Inconsequente, ele insiste em ser feliz/ E me coloca em delicada situação". Mais uma, Valentia: "Lavar dez tanques de roupa pra fora por dia/ Ser mãe, ser tia e avó, tudo em uma só/ Isso é valentia, sim".
Além dos vários formatos de samba (de gafieira ao carnavalesco), Caio incursiona pelo choro, a marcha-rancho e até a valsa, dividindo algumas canções com parceiros. Eu diria que a sonoridade de sua música tem um clima vintage. Tocando arranjos para pequenos grupos, nada menos que 29 instrumentistas repartem-se pelas 13 faixas do CD, de veteranos como Pedrinho Figueiredo, João Vicente e Texo Cabral à nova geração de Lucian Krolow, Mathias Pinto, Pedro Franco, Samuca, Rafael Ferrari e Fernando Sessé. O samba porto-alegrense está muito bem representado.
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Os 30 anos dos Paralamas na íntegra
Quem assistiu ao show Os Paralamas do Sucesso 30 Anos, que rodou o Brasil em 2013/14, pode ver que o público da banda segue amplo e empolgado, de fiéis cinquentões a adolescentes recém-convertidos. Esse público acaba de receber um presentão: a caixa Os Paralamas do Sucesso 1983-2015, reunindo os 18 álbuns da carreira e dois inéditos. Para quem acompanha Herbert, Bi e Barone desde o início (no primeiro Rock in Rio eu os vi ganhar o público na marra), ouvir os discos em ordem cronológica é uma experiência e tanto. Do disco de estreia, calcado em The Police, a banda dá um salto no segundo e um salto enorme no terceiro, o inovador Selvagem?, de 1986. No ano seguinte, o primeiro dos ótimos sete ao vivo, gravado no Montreux Jazz Festival na primeira vez lá de um grupo brasileiro de rock.
A trilha sonora do ziguezagueante Brasil pós-ditadura tem Paralamas de cabo a rabo. A banda nunca baixou a guarda nem se deixou levar pelo sucesso fácil. Hoje soa constrangedora para os petistas, por exemplo, a música Luiz Inácio (300 Picaretas), bônus do álbum ao vivo VamoBatêLata, de 1996. A letra, contundente, se referia aos deputados federais nas palavras do líder sindical Lula... Teve sua execução em rádio proibida pelo Congresso, em plena democracia.
Mas, para os fãs, as joias da caixa estão nos discos inéditos. Paralamas em Espanhol reúne 14 versões lançadas no mercado latino-americano nos anos 1990 e duas gravações feitas agora: Que me Pisen, da extinta banda argentina Sumo, e Hablando a Tu Corazón, de Charly García, que Herbert transforma em uma bossa nova latina. Já no CD Raridades estão gravações que apareceram em trilhas de cinema, de TV e discos de outros artistas. Este, sim, é pura surpresa, pois enfatiza o lado MPB dos Paralamas. Para começar, tem País Tropical, gravada para um comercial da Rider. E depois: Que Maravilha (Jorge Ben), Açaí (Djavan), É Papo Firme (Renato Corrêa), Nada Será como Antes (Milton/Ronaldo Bastos), Refazenda (Gil), Mustang Cor de Sangue (Marcos Vale), Ainda É Cedo (Legião Urbana) e por aí vai.
ANTENA - LANÇAMENTOS EM DISCO
AO VIVO NA CHINA
De Carlos Malta & Pife Muderno
A plateia que lotava o Teatro da Cidade Proibida, em Pequim, explodia em aplausos a cada música. Também, pudera: o instrumental do Pife Muderno é catártico pelo brilho agudo das flautas, a profusão rítmica e a excelência dos músicos. O pife (pífano), ancestral flauta nordestina de bambu, tem uma sonoridade única, que o carioca Carlos Malta soube sintetizar de forma ao mesmo tempo primitiva e jazzística. Afinadíssimo, o grupo criado há 20 anos se completa com Andréa Ernest Dias (também flautas e pifes), Marcos Suzano, Bernardo Aguiar (ambos nos pandeiros), Oscar Bolão (caixa, pratos, triângulo) e Durval Pereira (zabumba). No roteiro do álbum duplo, gravado em 2011, composições de Malta e clássicos como Ponteio, Canto da Ema, Assum Preto e Asa Branca, além da emblemática Pipoca Moderna, da Banda de Pífanos de Caruaru, motivadora da paixão de Malta pelos pifes. Delira Música, R$ 39,90
CEM GONZAGA
De Lulinha Alencar
Considerado um sanfoneiro do primeiro time, Lulinha veio do Rio Grande do Norte para tentar a sorte em São Paulo nos anos 1990. Tornou-se conhecido tocando com Elba Ramalho, Geraldo Azevedo, Chico César, Hermeto, Dominguinhos. Integrou a Orquestra Popular de Câmara, integra o grupo de choro Moderna Tradição. Mas esperou até agora para gravar seu primeiro álbum solo - antes, achava não estar pronto
"para tal responsabilidade". É possível, pois este disco soma virtuosismo e coragem. Lulinha foi aos primórdios da carreira de Luiz Gonzaga, no início dos anos 1940, e veio de lá com uma série de composições instrumentais já com a chama do gênio, entre elas Vira e Mexe, Pé de Serra, Pisa de Mansinho, Sanfonando. Tem baião, choro, toada, valsa e ritmos que não sei identificar. Todas tocadas com acordeão solo, nenhum outro instrumento! O que não é para qualquer um. Núcleo Contemporâneo, R$ 25
Coluna
Juarez Fonseca: Caio tem a tradição na genética
Sambista porto-alegrense lança primeiro disco solo
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