Definições estritas não dão conta de Nostalgia da Luz (2010): o filme que entra em cartaz nesta quinta-feira hoje no Espaço Itaú 3 convida o espectador a flanar de um tema a outro, surpreendendo ao propor analogias que acabam conduzindo a narrativa rumo a territórios inauditos. Longe de causar desconforto, porém, essa derivação é justamente o maior atrativo do longa dirigido por Patricio Guzmán - um dos mais importantes documentaristas em atividade no mundo, realizador do monumental A Batalha do Chile.
Chileno radicado na França, o cineasta ganhou no recente Festival de Berlim o troféu de melhor roteiro e o Prêmio do Júri Ecumênico com o documentário El Botón de Nácar. (A boa fase do cinema chileno, aliás, também foi premiada na Berlinale com o Grande Prêmio do Júri, o segundo em importância do festival, para El Club, de Pablo Larraín.)
Melhor documentário do European Film Awards de 2010, Nostalgia da Luz começa como se fosse um documentário científico de canal de TV a cabo, mostrando telescópios, observatórios astronômicos e estrelas. Já de partida, no entanto, a narração de Guzmán propõe caminhos paralelos ao acrescentar lembranças pessoais e comentários sobre o golpe que mergulhou o Chile nas trevas a partir de 1973.
Aos poucos, as conexões vão se esclarecendo: graças a características como a baixíssima umidade do ar, o deserto do Atacama é um dos melhores lugares do planeta para o acompanhamento dos astros no céu; o isolamento da região também serviu para os militares criarem um campo de prisioneiros durante a ditadura, aproveitando as instalações de uma mina de salitre abandonada.
O filme mostra que, ao lado de sofisticadas instalações que perscrutam galáxias em busca dos mistérios sobre a origem do universo, mulheres esquadrinham pacientemente a imensidão desértica atrás de pistas e fragmentos de ossos que possam indicar o paradeiro de maridos e parentes desaparecidos políticos, que podem estar enterrados em valas comuns.
Costurando depoimentos de astrônomos, arqueólogos e ex-prisioneiros do regime militar, Nostalgia da Luz liga os pontos: tanto o estudo dos corpos celestes quanto a busca pelos corpos dos entes queridos são maneiras de interrogar a memória e o passado - um anátema para muitos chilenos, que preferem deixar a história recente do país enterrada.
Com rara sensibilidade poética, Guzmán transcende o mero panfleto e adensa sua obra com questionamentos existenciais e metafísicos, sem nunca esquecer o contexto político-social.
Como os mais recentes documentários da cineasta belga Agnès Varda, Nostalgia da Luz é um filme-ensaio - um tipo híbrido de cinema que mistura investigação, autobiografia, poesia, documentário, divagação e até drama.
Falando à imprensa chilena sobre El Botón de Nácar, em que entrelaça o extermínio de indígenas no sul, os desaparecimentos políticos e a enorme extensão costeira de seu país, Guzmán forneceu uma chave de leitura também para Nostalgia da Luz: "Me interessa muito a geografia chilena e creio que se podem fazer metáforas por meio desses elementos. O que mais me interessa é a memória. Me interessa lutar contra a amnésia do Chile, o desejo de aparentar ser um grande país, o que também é, mas onde as diferenças sociais são enormes".
Cinco filmes sobre a ditadura militar no Chile
No (2012)
O diretor Pablo Larraín, encena o início do fim da ditadura de Augusto Pinochet, quando foi realizado um plebiscito para decidir pela continuidade ou não do regime militar
Rua Santa Fé (2007)
Carmen Castillo conta a história de seu marido, um líder sindical assassinado pelos militares, e destaca episódios da resistência popular sufocados pela repressão
Machuca (2004)
Andrés Wood destaca um menino pobre que vai estudar em escola de elite durante o governo Allende e testemunha as mudanças decorrentes do golpe que levou Pinochet ao poder
Desaparecido: Um Grande Mistério (1982)
Mestre do cinema político, Costa-Gavras mostra a saga de um pai americano (Jack Lemmon) que busca pelo filho desaparecido no 11 de Setembro chileno e descobre a participação da CIA no golpe
A Batalha do Chile (1975 - 1979)
Aclamado projeto em três partes no qual Patricio Guzmán passa em revista o processo político e social que o Chile viveu nos momentos anteriores e posteriores ao golpe de 1973