Bob Dylan canta Sergei Rachmaninoff. A proposta é absurda: uma música do russo que fazia música erudita de brechó na primeira metade do século passado cantada pelo trovador dos anos 1960 que, a esta altura, já teve não sei quantos renascimentos dos quais esse é só mais um. Mesmo assim... é exatamente o que acontece em Shadows in the Night, o álbum que Dylan lançou semana passada, embora já circulasse há meses nos meios alternativos e no repertório dos shows. Busque-se a faixa 7, Full Moon and Empty Arms, e lá está: uma canção de Rachmaninoff.
A coisa não é tão simples. Full Moon and Empty Arms ("Lua cheia e braços vazios" e nem vou me atrever a traduzir a letra que é horrorosa, sem esperanças, em português ou inglês) é um canibalismo em cima de uma das melodias do segundo concerto para piano do russo. Nos anos 1940, era moda invadir o repertório erudito, roubar as melodias que se quisesse, enfiar uma letra qualquer e, pronto!, se Frank Sinatra gostasse, já podia cantar.
Villa-Lobos quase passou por isso. Quando percebeu que uns americanos estavam de tocaia para transformar suas músicas em musical da Broadway, foi logo encampando a iniciativa: ele mesmo faria o musical, não precisava de esquartejadores. E fez: Magdalena estreou em 1948, ficou dois meses em cartaz. E sumiu.
Sinatra passou longe dos tropicalismos de Villa-Lobos, mas mergulhou no Rachmaninoff reinterpretado por Buddy Kaye e Ted Mossman. Foi um dos sucessos dos 1940 _ o russo era um morto recente e não estava em condições de reclamar e assim a música chegou até Bob Dylan, numa proposta que parece mais bizarra por Dylan regravar Sinatra do que por Dylan entrar no repertório da música erudita. Afinal de contas, não foi ele um dos responsáveis por jogar as canções de Sinatra no baú das inutilidades? Releituras numa hora dessas? Não vou passar julgamento: prefiro que quem se interessar ouça e julgue por si mesmo. É só colocar o nome da canção no Google e a primeira coisa que aparece é a versão de Dylan. Nunca mais a de Sinatra.