Não ouviremos a voz divina se erguer da sarça ardente, ainda que recebamos ordens de nossos superiores aqui neste mundo. Não libertaremos o povo escolhido de seu cativeiro, ainda que possamos livrar uma ou duas pessoas de seus grilhões cotidianos.
Não veremos o mar se abrir aos nossos pés, ainda que alguns caminhos nos sejam revelados por nosso próprio esforço. Como Moisés, no entanto, não fraquejaremos ao peso das tábuas, nem diante do longo deserto, nem às desavenças a nossa volta. Seguiremos, feito ele, independentemente de termos compreendido nossa missão.
E por isso teremos feito tudo certo, tantas vezes ignorantes, tantas vezes sábios, movidos por vago mérito, errando os erros erráveis, equilibradas as contas entre os golpes do azar e os da sorte, até divisarmos a terra de onde mana leite e mel. Mas esta terra não haverá de nos pertencer. Essa terra nos estará vedada porque não temos mais uma vida para lá chegar, uma vida para ser jogada, de verdade, ao fim do percurso.
Dez anos mais novos, duas vidas mais fortes talvez conhecêssemos o que seria de fato estar (não em fantasia) ao lado daquela mulher, daquele homem, vivendo em outra cidade, em outro país. Mas veremos tudo desde cima do monte, onde restarão nossos corpos. Tendo feito o que devia ter sido feito, virá o preço da travessia. Como Moisés, não chegaremos a Canaã. À diferença de Moisés, no entanto, perderemos não uma, mas muitas terras prometidas. Feito um complexo, ignorado pelo patriarca.
Porque apesar de nossas vidas tão mais curtas, seguimos tentando recomeçar naquele berço às margens do Nilo, para depois voltar a trilhar o dificultoso destino, vislumbrar o prêmio, não poder alcançá-lo, êxodo após êxodo, sempre um instante mais tarde do que deveríamos.
Perceber-se pela primeira vez vítima desse complexo tem um gosto de velhice. Espero que não o sintam, meus leitores, malgrado seja um gosto humano.
Se Moisés o sentiu, as escrituras não o registram.