Ao ler o artigo O Elemento Ausente do Debate, sobre o projeto PLL 237/09 (publicado neste caderno Cultura em 15 de março), de autoria de Jorge Barcellos, nota-se uma excessiva manipulação dos fatos em benefício de determinados argumentos. Lamentavelmente, cada vez mais vemos indivíduos se utilizarem da demagogia populista para arregimentar as "massas," como se elas, ao que eles contrariamente apregoam, não pudessem formar seu próprio juízo. Ao recorrer a tal expediente, o autor se utiliza de um conjunto de citações que vai de Platão a Pierre Bourdieu, passando por Marilena Chaui, Slavoj iek e Paul Virilio. Tal demonstração intelectual poderia parecer impressionante se, em todas as situações, ele não houvesse se utilizado de obras destes autores para fundamentar um discurso reacionário e conspiratório, como se ao fazê-lo tornasse plausível a lógica de seus argumentos. Podemos ver ao longo de seu artigo como os títulos destes pensadores transformam-se em enunciados, substituindo assim seu conteúdo pelos argumentos ilustrativos do autor. Trata-se da mais simplória das estratégias paradidáticas do populismo literário. Ler lombadas de livros na estante e enumerá-las sempre que uma palavra coincide com um argumento que nela o autor deseja vislumbrar. Dramatiza-se uma tese e junta-se a ela, de tempos em tempos, um título, que supostamente refere-se ao enunciado, mesmo que o conteúdo na verdade não reflita a lógica do argumento.
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Ao longo do artigo os equívocos são inúmeros, mas alguns são imprescindíveis enumerar aqui. Por exemplo: Barcellos considera que o legislador deve "determinar em nome da coletividade", e classifica os espaços públicos como sendo os "espaços municipais" de aparente propriedade do legislador a quem caberia determinar seu uso. Em seguida, invoca o "bem estar estético, cultural e ambiental", como se "bem estar" se aplicasse à estética e à cultura. Vê-se que ele os confundiu na verdade, com a decoração de interiores e o entretenimento, respectivamente.
Talvez a parte mais impressionante do argumento do Sr. Barcellos é a ideia de que especialistas são autoritários porque falam a partir do conhecimento especializado. Para ele, tais profissionais negam a "capacidade de entendimento das massas ou dos vereadores da beleza dos objetos artísticos". Vale notar que vereadores, aqui, são para ele separados das massas, demarcando um claro sentido de corporativismo. E argumenta novamente, perguntando se o parlamento não está justamente, em nome do cidadão, realizando "o direito de decidir quais monumentos públicos quer para sua cidade?". Mas não é justamente o argumento de Marilena Chaui que ele invoca, o de que o cidadão deve "participar das decisões de políticas culturais"? Há muito que o pensamento de Chaui vem sendo manipulado, e já é hora de apontarmos tais ocorrências cada vez que elas aparecem em discursos tendenciosos.
A manobra mais ousada e retumbante do artigo é a de "aterrorizar" o público de que o futuro da arte será aquele "nada promissor" do "horror estético". De que o caminho aberto pela obra de arte da Bienal do Mercosul Supercuia, de autoria de Saint-Clair Cemin, seria o de "uma" arte contemporânea de obras "violentas que tematizam a morte e o horror". Como ele mesmo escreve, é "a Câmara (Municipal) que tem o direito de perguntar" se seria "isso que os cidadãos desejam para sua cidade", ainda que seja ele que responda: "minha resposta é não", escreve Barcellos, os cidadãos não querem estas obras.
É bom lembrar que um dos projetos de Adolf Hitler era colocar Berlim abaixo e reconstrui-la conforme seus padrões de beleza. Hitler e os mentores de seus projetos organizaram a primeira exposição (de) Arte Degenerada em 1937, com obras consideradas fora dos padrões estéticos (ideais) determinados pela política nazista. É assustador que padrões de beleza considerados superiores sejam, vez por outra, utilizados para definir aquilo que alguns supõem, entre os quais o Vereador Vendruscolo e seu teórico Jorge Barcellos, seja o mais adequado para o gosto da população - embora eles mesmos proclamem que a população deva fazer suas escolhas. Sabem os historiadores, curadores, artistas, e outros profissionais da área, que o perigo da beleza reside em sua contingencial aplicação a determinados pressupostos da ideologia, resultando invariavelmente em rechaçar a diferença como singularidade dos direitos do outro.
Barcellos continua seu sistemático ataque aos artistas com uma teoria conspiratória quando denuncia que "fortunas têm sido manipuladas no campo das artes, inclusive de fundos públicos". E vai além: "a escultura pública é destes fenômenos que empurra o valor das obras de um artista para cima, razão pela qual eles têm todo o interesse em ocupar estes espaços". Seria tal afirmação absurda resultado da ignorância sobre o assunto? Ou pura demagogia? Ao estilo de Monteiro Lobato quando escreveu Paranoia e Mistificação (1917) sobre a exposição de Anita Malfatti, Barcellos soa como um pseudocrítico fora de época, inclinando-se ao único papel que sabe desempenhar, o de aterrorizar as massas com o prenúncio do "horror estético" que ele e Vendruscolo buscam evitar com um projeto de lei. Conclui-se que as obras escolhidas, na concepção do autor, seriam aquelas rapidamente explicáveis e inteligíveis "enquanto se toma uma xícara de café" como ele diz quando citou (mais uma vez) Will Gompertz. Mais uma vez a citação é distorcida, pois o que de fato este último está dizendo, não é que a arte deva ser simplória, mas que ela abre portas de diálogo em um processo contínuo de socialização criativa.