Um dos mais premiados autores gaúchos de sua geração, Altair Martins, 38 anos, retorna ao romance com uma reflexão árida sobre o isolamento em um mundo em que a solidão parece impossível. O autor de A Parede no Escuro (prêmio São Paulo em 2009) e Enquanto Água (Prêmio Moacyr Scliar em 2013) lança no final de março Terra Avulsa, um livro que mistura poesia, fotografia e prosa para narrar a história de um homem que funda seu próprio país em um apartamento.
Assim como outros trabalhos do professor de literatura Altair Martins, Terra Avulsa nasceu de um estudo na academia. O livro é o projeto paralelo ao doutorado em Letras desenvolvido pelo escritor.
- Na tese, eu estava trabalhando uma questão pós-moderna que vinha enxergando nos teóricos que estava lendo, a do "fim da natureza". A ideia, como diz o (crítico marxista americano) Fredric Jameson, é de que o nosso próprio inconsciente hoje foi colonizado, mapeado, que não se consegue encontrar mais qualquer espaço intocado, natural. O único ato heroico, então, é a tentativa de achar um lugar não mapeado no qual se esconder - diz o autor.
É esse movimento heroico, que pode muito bem se confundir com covardia, o que ensaia o protagonista do romance. Após ser assaltado por dois homens em uma motocicleta, o tradutor Pedro Vicente decide, transtornado pelo choque, não sair mais de casa. Trancado em seu apartamento no centro da cidade, ele passa os dias a traduzir os poemas de um autor nicaraguense e a tentar gradativamente se tornar inanimado como os objetos da sua casa, os cidadãos de seu país inventado particular, sua "Terra Avulsa" pretensamente apartada do mundo. Essa ideia guarda certas semelhanças com as teorias do pensador anarquista contemporâneo Hakim Bey e sua defesa da criação de "Zonas Autônomas Temporárias" como forma de iludir o controle disseminado de um Estado que pode mapear todo o mundo, mas nunca em escala real.
- Tive contato com o livro Taz, do Hakim Bey, no início deste projeto, quando estava concluindo A Parede no Escuro (romance de 2008). Foi aí que me deu o estalo sobre esse movimento da avulsão, do afastar-se, hoje impossível, como um gesto heroico, de viver nos desvãos, onde for possível, mesmo que no centro - conta Martins.
A moldura complexa do romance ainda dispõe de outras linhas de construção narrativa. Um dos projetos a que Pedro se dedicava antes do assalto, e que não interrompe com seu isolamento, é o de escrever poemas para um livro em colaboração com uma colega de editora, combinando poesia e imagens. Ela tira as fotos inspirada em seus poemas, e ele escreve com base em imagens, a maioria de objetos simples do cotidiano - algo que se acentua depois que Pedro se interna definitivamente em seu apartamento e começa a ver os objetos de sua casa como habitantes de seu país solitário. A autora das fotos, Eudora, torna-se a única pessoa a insistentemente invadir as fronteiras da solidão perturbada do narrador, com visitas esporádicas para levar comida e novas fotos.
Os poemas e as fotos do livro planejado por Pedro e Eudora também fazem parte do romance de Altair, intercalados à narrativa fragmentária do protagonista sobre sua clausura voluntária, na qual dialoga com objetos como um mancebo (um cabide como o da foto) de madeira no qual pendura livros abertos e que passa a tratar como um interlocutor. Uma última instância narrativa de Terra Avulsa acompanha ainda o exame minucioso que um dos assaltantes faz do conteúdo da mochila roubada do personagem, estabelecendo uma inesperada conexão com o homem que tenta se desconectar de tudo.
- Sempre penso que, ao começar um livro, primeiro se deve descobrir o narrador. Depois disso, é o narrador que vai te dizer qual é a estrutura desse livro. E ela, para mim, já nasceu fragmentária. Fui compreendendo que, quando alguém está trancado o tempo todo, isso vai ditar um ritmo. Essa limitação espacial e temporal de um personagem que não tem para onde olhar, não tem horizonte, só um espaço confinado, ditou esse ritmo desatento e fragmentário - diz o escritor.