Porto-alegrense radicado no Rio desde os seis anos, Nilton Bonder, 57, não é o típico rabino que se imaginaria. Primeiramente, ele não tem barba longa - aliás, não tem qualquer barba. Costuma aparecer em veículos de imprensa e em programas de TV falando sobre os mais diferentes tópicos, de religião a moral. Como se não bastasse, é um best-seller. Estima que já vendeu 1,5 milhão de exemplares de seus 21 livros (a editora Rocco, que o publica, não divulga números). Entre eles, está A Alma Imoral (1998), que inspirou uma bem-sucedida peça de teatro homônima com a atriz Clarice Niskier, estreada em 2006 e apresentada no Rio Grande do Sul diversas vezes, a última em 2013. Bonder também escreveu obras sobre a Cabala, o misticismo judaico, área que tem simpatizantes famosos como Madonna. A Cabala do Dinheiro (1999) está entre seus livros mais vendidos. Além disso, tem diversos títulos traduzidos no Exterior.
Engenheiro mecânico que trocou as ciências exatas pelos estudos religiosos, Bonder é um líder espiritual do século 21: sabe que sua missão vai além do próprio rebanho. Seus interlocutores são pessoas das mais diferentes crenças. Não é por acaso que tem um forte trabalho inter-religioso.
Tudo isso pode fazer parecer que ele é um rabino liberal. Não é bem assim. Considera-se conservador, um meio-termo entre reformista e ortodoxo. Acredita que não se deve abrir mão de princípios coletivos em prol de opiniões individuais. Para ele, há algo de sagrado na tradição que deve ser preservado.
Casado há 24 anos com Esther, arquiteta com quem tem três filhos, Bonder é rabino da Congregação Judaica do Brasil e atua no centro cultural Midrash, no Rio, onde recebeu ZH para uma hora de conversa.
Zero Hora - O que a religião tem para oferecer às pessoas hoje?
Nilton Bonder - Nosso mundo quer um produto de consumo imediato. Mas o mundo da fé é uma construção. Se você me disser que está sem condição física e quer ficar bem com seu corpo, vou te mandar fazer uma série de coisas que são uma construção. Você vai ter que construir uma relação com seu corpo para poder ter uma melhor condição física. Da mesma forma, as religiões não têm qualquer resposta (pronta). Quando uma religião começa a querer responder por que aconteceu uma tragédia, ela provavelmente irá para um lugar obscuro, porque ninguém sabe por que as coisas acontecem. Um religioso não é uma pessoa que detém uma informação que um psicanalista ou qualquer outra pessoa da sociedade não detenha. O que faz o mundo espiritual? Ajuda as pessoas a construir uma relação com a vida em que elas possam ter esse condicionamento de ser consoladas.
Zero Hora - O que é o consolo?
Bonder - Existem duas palavras envolvidas aqui, o conforto e o consolo. Quando uma pessoa fica enlutada, você nunca vai conseguir consolá-la. Porque o luto é o inconsolo. Querer tirar a pessoa desse inconsolo é tirá-la desse lugar que é próprio a ela, em que ela está em um momento traumático, se defendendo da vida. Estar inconsolável é o lugar natural para uma pessoa que está passando por um sofrimento muito grande. Qualquer um que tente forçosamente consolar essa pessoa vai estar, provavelmente, sendo grosseira. O que você pode oferecer, nesse momento, é um conforto. Pode ser um abraço, uma presença ou palavras que confortam. Elas não consolam. Você vai ter que passar o luto para poder ser consolado. É um processo.
Zero Hora - O senhor fez uma relação entre a religião e o exercício físico. Em ambos, não haveria milagre?
Bonder - Milagres existem. Até no mundo das coisas físicas. Posso chutar uma bola e acertar em um ângulo exato, o que é um milagre. A vida oferece surpresas. Mas ninguém pode viver de milagre, ficar esperando milagre. Se eu quiser que Deus me ajude sem eu trabalhar, esse milagre não vai acontecer. Posso ser uma pessoa que identifica algo como um presente da vida? Sim. Mas não existe milagre para você ficar com um bom condicionamento físico, existe trabalho. No mundo espiritual, também. Você não vai encontrar as respostas para a vida em um livro, em um segredo de um rabino escondido em algum lugar.
Zero Hora - O filme Um Homem Sério (2009), dos irmãos Coen, ilustra bem essa ideia de uma pessoa que busca um ensinamento secreto com um rabino de difícil acesso.
Bonder - Isso é baseado em várias histórias da tradição judaica. Se o sábio tem a resposta, ele fica em um lugar patético. Porque é patético ter a resposta. Você acha que o rabino tem a resposta pronta, customizada, preparada para você em um pacotinho, como um produto? Não. Mas isso é o que as pessoas buscam. E não só na tradição judaica. Na tradição budista, há milhões de historinhas do carinha que vai até o alto do Himalaia e chega no eremita dormindo em cima de uma cama de prego. É um pouco o que acontece naquele filme. Mas a expectativa da resposta é equivocada. Isso é muito difícil para as pessoas.
Zero Hora - As pessoas também têm expectativas equivocadas sobre Deus?
Bonder - A questão de Deus e da espiritualidade é muito parecida com o processo de desenvolvimento de uma criança. Tem o desenvolvimento intelectual, o desenvolvimento moral e o espiritual. O primeiro estágio do desenvolvimento espiritual é o Papai Noel: "Quero muito uma bicicleta". E o que o Papai Noel faz? Ele fica lá pegando todos os bilhetinhos de todas as criancinhas sobre o que elas mais querem. E ele dá. Muita gente para nesse primeiro estágio de relação com Deus. O segundo estágio é descobrir que você vai querer muita coisa que não vai vir. E isso é um choque. Ou descobrir que o Papai Noel é seu avô, seu pai. A vida vai obrigando as pessoas a irem para outro estágio de relação com esse criador, que não é mais o cara que te dá presente toda hora. Está cheio de presente que você deixou na lista e que não veio. Teve presente que foi tirado de você. Há pessoas que têm perdas grandes na vida, fora de hora, crianças pequenas que perdem a mãe. A vida começa a se mostrar em sua complexidade. Não é mais um criador que garante que tudo o que vai acontecer no mundo é justo aos seus olhos.
Zero Hora - A propósito disso, há um best-seller do rabino Harold Kushner, Quando Coisas Ruins Acontecem às Pessoas Boas. As pessoas também lhe perguntam por que coisas ruins acontecem com pessoas boas?
Bonder - Sim. É uma pergunta muito legítima, porque é o que as pessoas veem. Esse livro tenta responder de uma maneira que incomoda muita gente. Diz que Deus não é responsável por tudo que acontece. Se você é atropelado, não foi porque Deus quis. E, para muita gente, isso é uma coisa que, do ponto de vista lógico, significa que Ele não é onipotente. Ou que não está interessado nessa pessoa ou, ainda, não tem condições de lidar com tanta coisa. E o livro vem confortar as pessoas, porque coloca as coisas de uma maneira humana e responsável. Mas não consegue responder à pergunta.
Zero Hora - Haveria resposta a essa pergunta?
Bonder - A resposta, que seria o consolo, só pode vir em um esforço. Como o bom sofre e o mau se dá bem? Há um paradoxo. A pessoa pode resolver que não é assim, que, no final da história, o bom vai se dar bem, e o mau vai se dar mal. Porque aí eu fico feliz, fico consolado. Muitas vezes, a religião vai por esse lugar - que, no mundo vindouro, o cara vai para o inferno, por exemplo. Mas não acho que essa seja uma resposta espiritual de qualidade. Eu estaria tentando consolar a pessoa, quando a única coisa que eu poderia fazer é confortá-la. Posso dizer: "Você pode não estar enxergando as coisas". Ninguém sabe como é a experiência do outro. Você acha que o outro se deu bem, mas de onde você está tirando essa conclusão? É porque ele ganhou dinheiro? Mas está cheio de gente com dinheiro que vive no inferno. Onde você leu que ele se deu bem? Será que o cara que eu chamo de mau é tão mau? Talvez, em um plano totalmente diferente da minha visão, ele seja bom, talvez melhor do que o outro cara que eu achava bom.
Zero Hora - Trata-se de um paradoxo.
Bonder - Você tem que ficar muito curioso quando acha um bom paradoxo. É nessa hora que você tem que ter fé: "Peraí, tem outro olhar para isso". Sempre ter a desconfiança de que existe outro olhar é sábio. E sempre acreditar que tem outro olhar é da ordem da fé.
Zero Hora - Nos últimos anos, o chamado novo ateísmo ganhou força com autores como Christopher Hitchens, Richard Dawkins e Sam Harris. O ateísmo representa uma ameaça à religião?
Bonder - Quando se começa a pensar na vida e a traduzir isso em uma filosofia, acho que é um movimento religioso. Mesmo que esse movimento diga que não tem Deus. O budismo funciona sem Deus e é uma dimensão religiosa. O que é religião? É a filosofia profunda do ser humano. No passado, inclusive, era a ciência. Com o passar do tempo, a ciência ganha seus recursos da lógica que fazem com que a pessoa pense sobre o universo dentro dos limites daquilo que é racional. Mas se você vai na fronteira da ciência, do físico, vai ver elementos religiosos. A fala de todos esses megacientistas tem um certo teor religioso. Religioso não no sentido dogmático, mas no sentido de tentar religar. Einstein tinha esse desejo da unicidade e de uma metafilosofia. A religião que se sente ameaçada pela ciência é porque tenta ser um consolo ao invés de ser uma construção processual para ajudar as pessoas a encontrar os seus consolos.
Zero Hora - Muitos reclamam da correria da vida, do excesso de trabalho, do trânsito caótico. Em meio a isso, as pessoas estão sem tempo para amar?
Bonder - As pessoas estão tentando se adaptar a um mundo mais competitivo. O mundo se individualizou, e isso apresenta certos desafios. O que é amar em um mundo individualizado? A gente casa e separa, casa e separa. Quer dizer que as pessoas estão amando pior? Não tenho certeza. Você podia ter um casamento de vida inteira em que a qualidade não era necessariamente boa. Externamente, viveram felizes para sempre, mas você não dormia na mesma cama para saber o que acontecia. O individualismo produz um vínculo com o outro que, às vezes, não é tão fácil. O ser humano é o mesmo, tem os mesmos recursos para amar que no passado. Mas os desafios são outros.
Zero Hora - E quais seriam esses desafios?
Bonder - Há desafios na comunicação de um casal. A nossa atenção está dividida. Aprendemos a fazer duas, três coisas ao mesmo tempo. Há uma evolução da espécie. Lá atrás, nossa espécie sequer pensava. E aprendemos a pensar. Provavelmente, quando começamos a pensar, pensávamos calmamente em uma coisa só. Hoje, pensar em apenas uma coisa é, às vezes, um pouco tedioso. Por um lado, pode ser uma maneira de você querer ocupar a vida para não pensar em nada mais profundo. Em outra medida, o ser humano pensa em duas ou três coisas ao mesmo tempo como um ato evolutivo. Podemos criticar esse entupimento de coisas que fazemos. Ao mesmo tempo, você tem que reconhecer que as pessoas têm certo prazer em fazer isso. É o exercício de uma capacidade que elas têm. Amar hoje é amar de maneira diferente do que no passado. Mas existem os mesmos recursos afetivos no ser humano, e deve ter gente nesse mundo de hoje que ama tão bem quanto pessoas que amavam em outros tempos.
Zero Hora - Como se deve lidar com a relação entre a religião e as conquistas sociais das mulheres?
Bonder - As religiões têm que se modificar. Mas, quando falam da questão da mulher, acentuam a diferença. Talvez hoje, no século 21, eu não tenha como proibir mulheres de estarem lá na frente, conduzindo um serviço religioso como um homem. Mas a religião não quer que as pessoas percam uma certa sabedoria sobre a diferença entre homem e mulher. São dois instrumentos distintos, que compreendem a realidade de maneira um pouco diferente, mas essa diferença é uma riqueza. Então, se você olhar por outro lado, a distinção entre homem e mulher é um reconhecimento da diversidade. Depois que as mulheres ganham os direitos, muito merecidos, e espaço no mercado de trabalho, elas também pensam: "Não quero ser como um homem, tenho certas especificidades".
Zero Hora - Essas especificidades se confrontam com os direitos conquistados?
Bonder - Sim. A relação com a maternidade é diferente da paternidade. Hoje, tem um monte de pai que cuida de criança e mãe que trabalha o dia inteiro. Sim, é verdade, são direitos conquistados. Mas, se você olhar com muito cuidado, existe um lugar que é das diferenças, e há um lugar privilegiado e diferenciado para a mulher e para o homem. As tradições ficam, muitas vezes, em um lugar retrógrado. Mas elas têm um pouco a obrigação de ficar como um contraponto daquilo que é consenso. Normalmente, a sabedoria é aquilo que não fica no consenso. Sou super a favor da liberdade, do direito do indivíduo, mas todos os indivíduos vivem de deveres, e não de direitos. As religiões, muitas vezes, ficam no lugar da culpa, com o freio de mão puxado, não deixam as coisas acontecerem, questionam experiências que podem ajudar a trazer cura para as pessoas. Existem questionamentos que, à luz da discussão dos valores do século 21, são retrógrados, mas talvez eles contenham bons elementos para pensar melhor.
Zero Hora - Muitas pessoas o veem como um rabino liberal, mas o senhor já se declarou conservador.
Bonder - Sou liberal no que diz respeito à vida. Sou conservador no sentido de que existem instâncias que as pessoas, às vezes, não enxergam. Posso ter minha opinião em relação aos gays, então sou liberal. Só que a minha tradição é um coletivo, não representa apenas o que o Nilton Bonder pensa. Na minha tradição, mantenho vivo o debate. Se me botar com um rabino ortodoxo, ele vai dizer: "Gay não pode, é proibido ser homossexual".
Zero Hora - E o que Nilton Bonder diria?
Bonder - Ele diria: "Acho que não. Tem outra leitura". Isso é dentro do coletivo. Só que o coletivo tem suas normas. Debato dentro do coletivo com a mesma opinião liberal que tenho em relação à vida. Mas eu acato o coletivo para não me separar dele. Posso ser voto vencido. Nesse sentido, quando o coletivo se apresenta, ele é conservador. Ele deve ser conservador. Conservador significa, nesse momento, que você tem deveres com esse coletivo. Me vejo com todas as minhas opiniões, que acho que me qualifica como rabino liberal. Ao mesmo tempo, sou uma pessoa que reconhece que a identidade e o patrimônio de uma cultura, uma tradição, são o coletivo. Então, eu me submeto de forma conservadora a essa dimensão coletiva.
Zero Hora - Há judeus gays que frequentam sua sinagoga?
Bonder - Na minha prática, acolho-os igualmente. Aconselho sobre a vida matrimonial ou amorosa como faço com qualquer outra pessoa. Vejo um ser humano com os mesmos dramas. O acolhimento, na dimensão individual, é idêntico.
Zero Hora - Quando é que o coletivo se impõe?
Bonder - Se um casal gay quer se casar. Então, a opinião do Nilton Bonder agora tem que se voltar para o coletivo, porque isso (o casamento) é uma norma, uma prática do espaço coletivo. Não é que eu não queira fazer esse casamento ou não deva brigar por ele. Mas tenho que entrar no espaço coletivo e ver os espaços que tenho para realizar isso.
Zero Hora - Ou seja, há uma negociação difícil.
Bonder - Temos três movimentos (no judaísmo religioso): ortodoxo, conservador e reformista. O reformista tem muito esse olhar individualizado. É liberal do ponto de vista pessoal, e o coletivo tem menos peso. O conservador é um liberal que fica preocupado com o coletivo. Por exemplo: como os judeus vão continuar sendo judeus se eu tomar certas decisões individuais que os mais ortodoxos não acompanham? Qual é o jogo que tenho que fazer? Do que tenho que abrir mão para que certas características do coletivo não sejam perdidas? E o ortodoxo é um sujeito do coletivo, acompanha a lei. Sou conservador nisso. Às vezes, sou mais liberal do que os reformistas no sentido do indivíduo, mas, nas questões que envolvem o coletivo, tenho que abrir mão de certas coisas. Mas não de maneira passiva. Continuo brigando com as opiniões e tentando trazer uma compreensão. São dois instrumentos diferentes. Um é a minha relação de indivíduo com as coisas, e outro é minha relação enquanto parte de um coletivo.
Zero Hora - Fala-se muito na infidelidade religiosa do brasileiro. Judeus que vão a centros espíritas, católicos que frequentam casas de religiões afro-brasileiras, por exemplo. O que o senhor acha disso?
Bonder - Há duas características muito interessantes no brasileiro. Ele é sincrético, não deixa de ser (da religião a que pertence) porque vai ao centro espírita ou frequenta uma religião afro-brasileira. O segundo fenômeno é que as pessoas fazem um certo shopping pelas tradições. É muito comum as pessoas contarem: "Eu era católico, depois fui evangélico e agora sou isso". Não é parte da nossa cultura valorizar as raízes. Se você perguntar a uma pessoa na rua, ela sabe dizer de onde o pai veio, mas vai ter dificuldade de dizer de onde veio o avô. Claro que, nos grupos de elite, isso acontece menos. Quando as pessoas estão indo de religião em religião para ver quem tem a melhor resposta, estão indo em busca do consolo. É preciso persistir e suportar os paradoxos, ter um pouquinho mais de profundidade. As dimensões coletivas são fundamentais para um mundo que seja melhor de verdade. Não basta a gente se globalizar. Eu preciso te respeitar, entender a diferença, crescer nessa direção para que o mundo seja melhor.