O quarto álbum da banda Apanhador Só, Antes que Tu Conte Outra (2013), animou a todos quando saiu. As letras, que já eram boas, melhoraram, a sonoridade criativa do grupo amadureceu e ampliaram-se os temas tratados nas canções. Passados alguns meses, porém, veio uma surpresa maior. Ouçam só: o trabalho foi gravado entre a primavera de 2012 e o verão de 2013, antes, portanto, de os protestos tomarem as ruas em junho de 2013. Como, imaginar, então, que a banda parece ter composto uma espécie de trilha sonora antecipada das manifestações que convulsionaram o país no ano passado? Ao menos em Porto Alegre, estou certo de que alguns dos que engrossaram o coro descontente tinham na cabeça uma ou mais canções do CD.
Para não ficar no vazio, em Mordido, que abre o álbum - há até um vídeo no YouTube, intitulado Não Vai Ter Copa, que traz a música com uma série de imagens afins aos protestos - o eu da canção desmascara seu interlocutor, habilmente indeterminado, e dá a ele quase um ultimato. "Essa balela aqui não vai colar / não tá tão fácil assim pra convencer / esse teu papo de querer crescer / (...) não cola mais, já deu pra perceber" ou "O teu esquema sempre foi lograr / criar uma imagem boa pra vender" são versos representativos. Reparem na acusação da mentira, na expressão da descrença, na desconfiança, na afirmação de que há um esquema para enganar e atrair as pessoas - linha a linha, alguns dos cartazes que vimos nas ruas.
As referências estão por todo o álbum e manifestam a possível "gota dágua" sobre vários pontos: "Cansado eu chego em casa, o William Bonner me afaga / me contando alguma fábula de algo que ocorreu" (Despirocar),"Que é uma delícia / te deixa gorda / ninguém sabe a fórmula / mas tem muito sódio" (Líquido Preto),"Qual é, afinal, o peixe que tu tá vendendo?" (Por Trás) e a impressionante Reinação, que conta o dia da revolução num clima lúdico, bélico e utópico. Letras amplificadas pelo uso de distorções, batidas eletrônicas e sonoridades não ortodoxas - sinetas, latas, campainhas etc. -, que dão um ar de extraído diretamente da vida comum das pessoas e de que o mundo representado é um tipo de engenhoca velha, rangendo.
Descrito o factual - que a banda conseguiu plasmar nas canções muitos dos traços que comporiam os protestos em seguida -, vale pensarmos um pouco sobre como isto foi possível e também investigar em que isso nos ajuda a entender melhor, tanto as canções, quanto os protestos. No primeiro caso, e, para o bem da conversa, dispensadas as explicações transcendentais, acho que um caminho interessante seja o entendimento da concepção moderna de artista, qual seja: aquele que busca representar, da maneira mais precisa possível, o tempo e o espaço em que vive. Em nosso tempo e espaço tão velozes, essa definição ganha interessantes matizes, porque, apesar do que diz a Física, o tempo não parece chegar ao mesmo tempo para todos nós, ou, dizendo de outro jeito, o desenvolvimento das coisas fez com que incontáveis tempos históricos e subjetivos coexistam num mesmo tempo físico em uma sociedade.
Vejamos diretamente o exemplo do álbum, que esclarece. É mais ou menos geral a sensação de que os protestos vieram como desfecho de um processo anterior. Sem entrar nos detalhes do enredo, saímos de uma longa ditadura com várias heranças nefastas, dentre elas: um monopólio dos meios de comunicação, figuras políticas não confiáveis, amplo domínio do mercado por produtos estadunidenses, certo ufanismo patético e infundado, além de uma mudança no perfil da classe média, agora mais consumista e mais imediatista.
No entanto, a maturação dessa conjuntura chega a tempos diversos a cada um. O "basta" veio pra muitos em junho, mas certamente era o pão diário de alguns espíritos indignados um tanto mais cedo. A melhor interpretação da expressão "os artistas são antenas da raça", de Pound, me parece ser exatamente esta. Artistas (e intelectuais, e estudantes, e taxistas e etecéteras) podem sentir antes o que está no ar e expressar tal angústia por meio de suas possibilidades.
Esta é a minha explicação do prenúncio: a Apanhador Só apanhou, só, no ar, uma série de insatisfações e fez canção em alto nível no seu mais recente álbum. Antes que Tu Conte Outra atingiu, assim, o ideal da arte moderna, ao representar seu tempo e proporcionar uma chave para que os contemporâneos interpretem a si e ao seu entorno com mais facilidade.
De que nos serve apontar essa simetria (ou isomorfia)? Para o meu gosto, serve também para fazer o caminho inverso e ler os protestos com a lente fornecida pelos artistas. Por essa lente, duas características me soam claras.
A primeira é que o grosso das manifestações viceja e padece por excesso de juventude. Sou certamente do time que prefere jovens inconformados a conformistas, mas muitas vezes me incomoda certa arbitrariedade dos protestos, que acabou derivando para uma posição autoritária (uma querida professora, também de esquerda, menos mineira do que eu, não hesitou: uma posição fascista). Debati na época com alunos que tomavam parte no protesto e me lembro de uma estudante que disse: "Eu não sei o que fazer, eu só sinto essa angústia, essa coisa na garganta". Neste álbum, as canções da banda expressam muito bem isso!
A segunda característica, mais abstrata, consiste no diagnóstico de que nossas vidas têm transcorrido numa velocidade muito maior do que antigamente. Alguns conseguem lidar bem com a correria e manter-se firme em meio ao turbilhão, mas a maioria é tragada pela corrente de consumo, expectativas, desejos, rejeições e superficialidades. Uma vontade urgente de refrear o ritmo é uma das notas que se realçam na audição do álbum, como no verso "Se a vida é faísca / que brilhe devagar" (Vita, Ian, Cassales) ou na queda do andamento de Não se Precipite, por exemplo.
Podem ter certeza de que um dos componentes dos protestos foi e será um grito desesperado ante a fugacidade, mesmo que muitos não o saibam.