Um médico que já tem bisnetos me envia uma pergunta que, a meu ver, é antes um pedido disfarçado para que eu exorcize um fantasma do passado: "Na faculdade de Medicina que cursei, tínhamos um professor que até hoje supera todos os que já conheci, tal era sua cultura e seu domínio da matéria. Além de brilhante poliglota, demonstrava um grande domínio da língua portuguesa, sendo um crítico implacável desses estrangeirismos que invadiram o idioma. Numa de suas palestras, surpreendeu-nos ao investir contra o desvirtuamento que o vocábulo bizarro sofreu. Ele explicou que esta palavra, desde a origem, significa elegante no porte, garboso - mas, segundo ele, estamos de tal maneira submetidos ao imperialismo norte-americano que agora aceitamos que seja usada com o sentido de estranho, esquisito. Sempre segui este ensinamento, mas hoje criei coragem para perguntar ao senhor se sou mesmo obrigado a usar esta palavra no sentido original ou se já posso empregá-la no de uso corrente".
Entendo muito bem o problema, prezado leitor. Já passei (e ainda passo) por isso. Quantas vezes não fiquei preso, por anos a fio, a algum preceito superado só porque o tinha ouvido de algum professor que respeitava, sentindo-me incapaz de renegar suas palavras porque isso soaria para mim como um ato de traição e deslealdade? Deixemos a explicação para o Mário e a Diana Corso, amigos do peito, que sabem enxergar muito bem esses grilhões invisíveis com que nós mesmos nos aprisionamos, e vamos ao que interessa: o senhor tem vontade de usar bizarro no sentido de "extravagante"? Pois pode fazê-lo; está liberado. Deixe aquele "encosto" para trás e venha se juntar a praticamente todos os brasileiros que escrevem neste século.
Os puristas (o que já desrecomenda a tese do antigo professor) eram contra este uso, pois sonhavam em preservar o sentido primitivo (que ainda se encontra na velha saudação "Como vai essa bizarria?"). O que eles não sabiam, mas a ciência hoje sabe, é que é impossível fazer um vocábulo estacionar no tempo. Como a moeda, a palavra só tem o significado que os usuários atribuem a ela. Podemos até lamentar a mudança de bizarro, mas o termo, como milhares de outros, perdeu o significado antigo e adquiriu um novo. É assim que os idiomas funcionam. Por isso, aliás, a Etimologia é tão interessante: ela nos revela os antigos significados que os vocábulos tiveram, em cada época - o que é indispensável para que possamos entender os textos que nossos antepassados nos deixaram.
Quem percorrer um texto escrito entre o séc. 17 e meados do séc. 19 - por exemplo, do Padre Vieira até Camilo Castelo Branco - verá que o termo bizarro sempre aparece como elogio: "Viu que ia juntamente pelo mesmo caminho o mais gentil homem, o mais airoso, o mais bizarro mancebo que vira em sua vida" (Vieira); "A formosura das cidades, a beleza dos edifícios, a fortaleza dos exércitos, a bizarria dos trajos, a galantaria das cortes" (Rodrigues Lobo); "Admirou-se que um rapaz tão galante e bizarro não se empregasse melhor" (Camilo). Para falar nesta palavra, Antônio Morais, nosso dicionarista fundador (1813), só menciona qualidades: chama-se de bizarro o homem bem-posto, bem trajado, que goza de boa saúde, que tem "garbo no corpo". Todavia, a partir da segunda metade do séc. 19 começamos a atribuir a esta palavra o sentido atual de "estranho, fora do padrão habitual": "Mundo estranho e bizarro da quimera" (Castro Alves); "Alguém escreveu estas notas desordenadas e bizarras" (Eça de Queirós); "Tinha o temperamento desigual e bizarro de um epilético" (Euclides da Cunha). Sua origem parece ser o italiano bizzarro, "furioso, colérico", de onde passou para o Espanhol, já com o sentido de "bravo, ousado". Daí entrou em nosso idioma, presumivelmente durante o domínio espanhol (1580 - 1640), desta feita com o sentido de "garboso, gracioso". Como se pode ver, passou por várias acepções, até estacionar (por enquanto), no sentido atual de "esquisito, estranho, extravagante".
Por último, é bom lembrar que bizarro jamais teve algo a ver com os americanos, nem com a língua inglesa. Culpar os norte-americanos por tudo o que acontece a esta Pindorama faz lembrar a cena que Agripino Grieco presenciou num navio que ia do Rio ao Recife: no tombadilho, os passageiros acompanhavam, fascinados, uma dupla de tubarões que seguia a esteira da embarcação, certamente atraídos pelo lixo de bordo. Sempre que eles se aproximavam um pouco mais do casco, ouvia-se nitidamente um cidadão de terno branco resmungar, mal-humorado: "Este governo!".
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NOTA: lembro aos amigos que inicia, no dia 6 de janeiro próximo, na Casa de Ideias, no Shopping Total, nova turma do meu curso de Revisão Geral do Português. Mais detalhes pelo e-mail contato@casadeideias.com ou pelo telefone 3018-7740.