Uma cidade é sempre um mistério. As mais antigas e nobres, as mais novas e turbulentas, as megalópoles e as aldeias silenciosas. Nosso chão, Porto Alegre, não é diferente. Há por aqui muita história mal contada, muito orgulho mal fundado, muito equívoco engolido sem piscar os olhos. Nada demais. A existência é assim: esquiva, resvaladiça. Fazemos nossas escolhas e vivemos de acordo com elas. Há, porém, os que não se conformam totalmente com explicações incompletas ou com adoração de ídolos nem sempre confiáveis. Em geral, os que não se conformam têm espírito de repórter: aquele que busca a verdade.
Walter Galvani é um repórter. Antigo, determinado, erudito, tranquilo. Já dirigiu jornais, escreveu livros, ganhou um Prêmio Casa de las Américas pelo brilhante Nau Capitânea, mas continua inteiro e irredutivelmente repórter. Talvez seja uma opção romântica, mas alguma coisa secreta move o repórter em busca de explicações para certos fatos nebulosos. Do outro lado do rio, em sua trincheira que é uma escrivaninha, Walter Galvani observa Porto Alegre, como os antigos farroupilhas o fizeram, e medita sobre as pequenas mazelas que atormentam alguns dos seus atuais moradores.
Uma delas, quase uma bobagem, mas que acende iras e debates, é a vocação política da cidade, que já atravessa séculos: farroupilha ou imperial? Fruto de sua meditação e investigação de repórter perseverante é o livro A Difícil Convivência, que ele lança e autografa hoje, às 18h, na Feira do Livro, à sombra dos jacarandás. Todos sabemos que os farrapos tomaram Porto Alegre quase sem combate e foram seus senhores durante um ano, mas, por desleixo militar, a perderam para os imperiais, também quase sem combate. Desde então, impuseram um cerco feroz e inútil, que durou quatro anos. Tiveram que abandonar o cerco, a cidade respirou e até ganhou um galardão do imperador D. Pedro II, que a chamou de "mui leal e valorosa". Desde então, estabeleceu-se o debate.
Por ser repórter veterano, Galvani controla as emoções. Com sobriedade, paciência e certa ironia velada, pesquisou documentos antigos, jornais amarelados pelo tempo, entrevistou eruditos de opiniões divergentes e foi montando pouco a pouco o painel desse desencontro. No seu relato, não há cargas de cavalaria, clarins triunfantes nem heróis ensanguentados agonizando com as vísceras abertas - Galvani é mais civilizado que certos escritores do seu tempo... -, mas há o cinza dos preconceitos que adubaram nosso chão, a raiva dos intransigentes que se infiltraram em nosso sangue e o orgulho meio bobo de que somos herdeiros e continuadores.
Outro repórter irredutível, Elmar Bones, que muito já pagou e continua pagando o fato de ser repórter e apenas repórter, me disse que um livro é uma máquina de fazer pensar. Ou seja, algo extremamente perigoso. A Difícil Convivência, de Walter Galvani, não fará nenhum leitor correr perigos extremos, mas sem dúvida fará todos pensarem um pouco a respeito de nossos ridículos e obsessões municipais, e acho que isso é algo justo a se exigir de um livro, e suficiente para compensar sua leitura.
* Escritor e cineasta
A Difícil Convivência - Porto Alegre e os Farrapos
De Walter Galvani. Ensaio, AGE Editora, 158 páginas, R$ 39 (em média). Lançamento hoje, às 18h, na Praça de Autógrafos