O projeto História Coletiva, em que o escritor Fabricio Carpinejar inicia uma história para os leitores darem continuidade, já começou a ganhar participações (confira abaixo). Diariamente, um novo trecho será postado aqui, sempre às 19h, até domingo.
Ao fim da História Coletiva, os autores selecionados terão a oportunidade de se encontrar com Carpinejar e conversar sobre os rumos da trama construída pelos diferentes autores. CLIQUE AQUI PARA LER O REGULAMENTO
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DIABO VERDE
1ª parte
Algo fedia dentro de casa. Um cheiro de gato morto. Um cheiro que atrasava os gerânios em cima da mesa.
A esposa colocava a culpa na geladeira. Achou um sushi da noite anterior e jogou fora. Não adiantou.
O odor insistia em tomar os corredores, a sala, o quarto. Quase uma voz doente de tão forte. As narinas gritavam, não mais respiravam normalmente.
Ela retirou todos os produtos da geladeira, encontrou uma rúcula perdida na grade, amaldiçoou a verdura, mas tampouco era ela, localizou um presunto vencido na gaveta, culpou sua distração, mas também não era ele.
O marido começou a desconfiar dos ralos. Inspecionou com as luvas amarelas os banheiros e a cozinha. Mexeu o fundo do lodo com o arame dos cabides, despejou Diabo Verde, e nenhum milagre fazia o azedume evaporar da residência.
trecho de Fabrício Carpinejar
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2ª parte
O filho caçula chegou da escola e foi imediatamente convocado para um rápido júri popular. Sem direito a habeas corpus. Seria o par de tênis azul-varejeira, com prazo de validade vencido? As meias de futebol autografadas pelo Claudiomiro que jaziam embaixo da cama?
Nenhuma das duas opções. Ganhou liberdade condicional até o banho. Lavando bem os cantinhos, por via das dúvidas. Algo de Podre no Reino da Dinamarca? - disparou a filha mais velha quando abriu a porta, retornando do serviço. Com a experiência de quem trabalhava na peixaria do minimercado Bem Bom há cinco anos, alguma coisa realmente não cheirava bem naquela casa. E não era o siri da promoção.
Sem mais esperanças e com as narinas em brasa, os caçadores do cheiro perdido estavam quase jogando a toalha molhada quando a campainha tocou. Do outro lado do olho mágico, atraído pelo fede-fede, surgia Seu Nenê Perdigueiro. O vizinho do 201. Homem de nariz crescido e criado em tudo que cheirava mal. Ou muito mal. Especialista na descoberta de cheiros não-catalogados. Um sommelier do budum. Nada escapava da competência nasal do Seu Nenê.
Entrou de nariz empinado. Sem fungar, decretou que o cheiro não era animal, nem mineral. Muito menos vegetal. Era sobrenatural.
trecho de Paulo Roberto Garcia Bottega
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3ª parte
Alguém se lembrou de verificar o porão. Hipótese bastante improvável já que a última vez que entraram lá foi em janeiro, para guardar a árvore de Natal e isso já tinha quase um ano. Como o cheiro estava a ponto de enlouquecê-los resolveram tentar mesmo assim.
O porão tinha uma única porta, era um alçapão no meio da sala, debaixo do tapete. Fora essa, as outras aberturas para entrada de ar eram pequenas janelinhas todas com tela para que nenhum bicho pudesse entrar, nem mesmo camundongos seriam capazes.
Arredaram o tapete. Como não acreditassem que o cheiro pudesse realmente vir dali, foram totalmente despreparados, narizes descobertos. A porta do alçapão foi aberta e foram todos pegos de surpresa pelo odor que indiscutivelmente ficou mais forte e invadiu euforicamente suas narinas. <?xml:namespace prefix = "o" ns = "urn:schemas-microsoft-com:office:office" />
trecho de Denise dos Santos Flores Ferro
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4ª parte
Todos taparam imediatamente os narizes e olharam para dentro do porão. No meio de muitas teias de aranha e muito pó havia uma caixa. A descoberta deixou todos desconcertados. Que caixa era aquela? Ninguém se lembrava dela. Aliás, o que havia dentro? Antes de saber a resposta para essa pergunta, precisavam retirá-la dali. Um novo problema. Pois tudo indicava que o mal cheiro vinha da caixa. Era uma dessas caixas de papelão pardo, sem nenhuma inscrição, as abas seladas com fita crepe.
Depois de uma rápida confabulação sobre o que fazer, finalmente ergueram a caixa para fora do porão. O odor ficara ainda pior. Mas, apesar da repulsa, a curiosidade falava mais alto e agora finalmente descobririam o motivo daquele cheiro ruim que só aumentava. Foi quando ouviram um barulho dentro da caixa.
trecho de Isac Nikos Iribarry Isdra
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5ª parte
A mãe e a filha soltaram gritinhos, instalando-se imediatamente sobre os banquinhos da cozinha. O pai sentiu suas mãos ficarem geladas. Seu corpo inteiro paralisou. O vizinho benzeu-se já imaginando qual entidade do mundo sobrenatural estaria naquela caixa. O filho caçula foi o único a permanecer tal qual estava: com o corpo apoiado na porta da cozinha, preocupado em ouvir no último decibel que seu Ipod permitia sua banda favorita. Seu único movimento foi erguer a sobrancelha, como se questionando sobre o que teria provocado aquela movimentação estranha de todos.
E foi assim, com mãe e filha instaladas sobre os banquinhos, pai congelado, vizinho benzido e o filho caçula preocupado em repetir o verso It's where my demons hide que o barulho se repetiu e uma nova onda fétida se deslocou pelo cômodo. Mal sabiam eles o quanto aquele verso da canção repetida incansavelmente pelo filho refletiria a cena que se desenrolaria na sequência.
trecho de Juliana Dalpian
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6ª parte (final)
Todos temiam abri-la, pois não conseguiam recordar ou sequer imaginar o que havia dentro. "Vamos jogá-la fora" dizia a irmã mais velha. Já o filho caçula, curioso, queria abrir a caixa de qualquer jeito.
Levaram a caixa até o quintal, próximo às árvores e flores e então abriram a caixa. O ser, objeto ou seja lá o que era, saiu, evaporou, se "escafedeu" tão rápido que não foi possível identifica-lo. "E agora? Nunca saberemos o que era", dizia o pai. "O importante é que pare de feder", exclamava a mãe.
Então todos retornaram para dentro de casa, exceto o irmão mais novo. O cheiro repugnante não afetava mais os quatro cantos da residência e agora a paz reinava. Porém, alguém parecia não estar tão contente.
Ainda no quintal, o pequeno membro da família estava sentado na grama com o olhar distante e falou baixinho: "vou sentir sua falta, Hortêncio"
trecho de Danielly Cerezer Benetti