Romancistas precisam de isolamento e reality shows, por sua vez, dependem da invasão. Sendo assim, o que acontece quando a escrita se transforma em um espetáculo televisionado?
Essa questão está sendo respondida pela TV estatal italiana, que apresentou em novembro o programa "Masterpiece", um reality show no qual aspirantes a escritores concorrem em desafios literários até que um dos competidores fature um grande acordo editorial - e receba um nível de publicidade que poucos romancistas conseguem após uma vida de trabalho silencioso.
Todos os lugares comuns dos programas de talentos para a TV estão lá: a encantadora possibilidade da fama, a exposição dolorosa, um corpo de especialistas que dão vereditos capazes de mudar vidas. Há até mesmo um "confessionário", no qual os participantes podem mostrar suas angústias (para a câmera, naturalmente).
Se "Masterpiece" for um sucesso, os produtores podem tentar levar o conceito a outros países - uma possibilidade capaz de assustar e intrigar a indústria editorial. À primeira vista, muitos consideram o conceito exagerado; mas, por outro lado, com que frequência obras literárias são citadas no horário nobre da TV?
Para desenvolver "Masterpiece", o canal Rai 3 colaborou com a FremantleMedia, uma empresa que produziu e distribuiu franquias ao redor do planeta, de "American Idol" ao "China's Got Talent", passando pelo "X Factor Indonesia". O desafio era criar um programa de TV cativante sem permitir que ele se tornasse caricatural - como o sketch do Monty Python em que locutores esportivos narram cada jogada enquanto Thomas Hardy escreve "A Volta do Nativo".
Durante a gravação de um episódio em outubro, o grupo de especialistas - composto pelos romancistas Andrea De Carlo, Giancarlo De Cataldo e Taiye Selasi - se sentou atrás de uma mesa enquanto maquiadores secavam testas suadas e retocavam o batom. Em frente aos juízes, quatro participantes escreviam em teclados e cada palavra digitada aparecia em uma tela para que todos pudessem visualizá-las, enquanto um relógio sobre suas cabeças marcava o tempo e as câmeras davam close-ups nos rostos dos escritores.
Em seguida, Maria Isabella Piana, uma professora aposentada de 66 anos da Sicília, ficou nos bastidores, esperando pelo veredito do desafio: uma entrada de dicionário da perspectiva de alguém que havia ficado cego. Piana se candidatou para participar do programa depois de não conseguir um editor para o romance que escreveu sobre as vidas de um grupo de italianos dos anos 1960 aos dias de hoje.
- Não ser conhecida foi o que me motivou a vir para cá - , afirmou. - Com um pouco de visibilidade, talvez haja alguma esperança - . Minutos depois, os juízes votaram por sua saída do programa.
Alessandro Ligi, um advogado romano de 49 anos com um romance não publicado sobre uma desilusão amorosa, achou extremamente difícil trabalhar em frente às câmeras.
- Não há nada mais íntimo que escrever - , afirmou. - É algo que faço sozinho e não tolero que ninguém sequer olhe para a tela do computador - . Sua tarefa seria escrever um conto de uma página da perspectiva de um homem que observa o casamento de sua amada com outra pessoa.
Ligi foi chamado para ler sua obra em voz alta. Ele entrou no estúdio com as luzes apagadas e foi ao seu lugar sobre um tapete vermelho iluminado, em frente aos juízes. Ele pegou a folha de papel e tentou dar um pouco de drama à leitura. A tarefa foi árdua e uma gota de saliva tremia em seus lábios.
Os juízes decidiram que Ligi poderia ficar para o próximo desafio. No dia seguinte, ele iria falar sobre seu romance para uma celebridade durante um passeio de 59 segundos em um elevador.
Alessandro Baricco, um importante romancista italiano que apareceu em programas literários mais convencionais, não aceitou um convite para aparecer em "Masterpiece". - Se você conhece alguém capaz - jovem, com talento e vontade - e quer dificultar muito a sua vida, transforme-o em uma estrela de TV - , afirmou durante uma entrevista.
O programa - Masterpiece dará a muitas pessoas uma ideia sobre o que é literatura, mas não uma ideia compartilhada pelas pessoas que realmente escrevem - , disse ele.
Quaisquer que sejam as ideias dos italianos sobre literatura, muitos desejam escrever. O canal Rai 3 exigiu que os candidatos a uma vaga no programa enviassem um romance não publicado. Em menos de um mês, 5.000 livros chegaram à emissora.
Uma equipe de leitores averiguou a pilha de textos e, em seguida, os produtores realizaram testes em frente às câmeras, selecionando uma dúzia de participantes para cada um dos seis episódios. Os juízes aprovavam apenas quatro desafiantes, com base nos manuscritos enviados e nas respostas a perguntas feitas pelos juízes.
Cada um dos quatro participou de um evento, (assistir a um casamento, no caso de Ligi, por exemplo, ou passar um dia com um cego, como no caso da tarefa de Piana), e, em seguida, o grupo retornou ao estúdio para um exercício de escrita. Os participantes teriam 30 minutos para realizar a tarefa e, em seguida, precisariam ler o resultado em voz alta. Os dois aprovados competiriam entre si, falando durante 59 segundos sobre suas obras com personalidades literárias e revisando seus manuscritos, sendo que apenas um participante passaria para as finais.
Em fevereiro, os seis finalistas serão reunidos com mais três participantes trazidos de volta pelos juízes e três escolhidos pelo público em uma votação online. Depois de outros desafios, apenas um escritor irá triunfar.
Uma importante casa editorial, a Bompiani, irá publicar o romance do vencedor em maio, com uma tiragem inicial de 100.000 cópias - um número gigantesco para os padrões atuais do mercado editorial italiano, onde um romance de estreia que venda 10.000 cópias é considerado um grande sucesso. Até mesmo nos Estados Unidos, 100.000 cópias para um romance de estreia seria algo extraordinário.
Selasi, uma autora britânica que vive em Roma, ficou inicialmente preocupada com a possibilidade de aparecer na TV italiana, famosa por exibir homens velhos ao lado de meninas dançando. - Dúvida número 1, mulheres na TV italiana não são sinônimo de literatura - , afirmou Selasi rindo. - Mas, ao mesmo tempo, eu adorei a ideia de que isso pudesse funcionar - .
"Masterpiece" não irá necessariamente identificar o melhor autor desconhecido da Itália, reconheceu. O objetivo do programa é somente o de encontrar o melhor entre os que ousaram participar e um pouco de ousadia é fundamental para quem quer ter sucesso escrevendo, afirmou Selasi.
- Tímido ou não, você vai precisar se expor de alguma forma, se quiser ser publicado - , reconheceu ela.
A exposição pela qual um escritor precisa passar para ser publicado e promover as vendas pode envolver questões complicadas. Cada vez mais, os autores são encorajados a fazer o marketing e a divulgação de suas obras, além de fazer as tradicionais leituras públicas, por meio de páginas no Facebook, fóruns de leitores na web, posts no Twitter e trailers no Youtube. Alguns escritores gostam de se comunicarem diretamente com os leitores, enquanto outros recuam quando precisam vender as próprias obras.
Contudo, a autopromoção está longe de ser uma novidade na literatura.
O historiador grego Heródoto financiou uma viagem para divulgar sua obra e Maupassant enviou um balão de ar quente pelos céus de Paris exibindo o título de um de seus contos, de acordo com Tony Perrottet, autor de um ensaio sobre o assunto, escrito em função de seu medo de - tentar empurrar minha obra como faria um vendedor de Viagra - .
Um dos juízes de "Masterpiece", De Cataldo, destacou que até mesmo artistas famosos da Renascença se permitiam fazer atos descarados de autopromoção. Michelangelo e Caravaggio, por exemplo, "ficariam completamente tranquilos" em um estúdio de TV. Quanto a escritores com Kafka - bom, talvez ele tivesse ficado em casa. Mas, ainda assim, um reality show não é demais?
- A Itália é um país em que as pessoas leem cada vez menos - em que mais livros são publicados e menos são vendidos - , lamentou De Cataldo. - O livro está morrendo e se faz necessário fazer o que for preciso para salvá-lo. Até mesmo um show de talentos - .
Cultura
Escritores participam de competição em programa de TV na Itália
No reality show 'Masterpiece', aspirantes a escritores participam de desafios literários
GZH faz parte do The Trust Project