Num dia destes fui acusado amigavelmente de empregar a maior parte das colunas de O Prazer das Palavras para criticar a opinião dos que não pensam como eu e satisfazer, assim, uma vontade insaciável de humilhar o próximo.
Para ter certeza de que não estava fazendo nada disso, tive a pachorra de elaborar uma rápida estatística nos textos publicados nos últimos dois anos, quando então encontrei o seguinte resultado: mais ou menos a metade foram usados para defender formas atuais, modernas e legítimas de nosso idioma do ataque injustificado de certos néscios intolerantes que andam espalhados por aí; da outra metade, a maior parte dos artigos foi empregada em esclarecer etimologias e apontar parentescos inusitados entre palavras conhecidas.
Sobraram, é verdade, uns quinze por cento de pancadaria, mas fiquei com a consciência tranquila ao confirmar que toda a vez que usei aqui de veneno ou ironia foi em legítima defesa.
No primeiro caso - convencer os outros a ser mais tolerantes para com as novidades que a língua adota para se enriquecer -, tenho às vezes aliados providenciais. Para um velhíssimo amigo que vive no exterior há mais de vinte anos e que estranhou o emprego que os jornais vêm fazendo do termo descolado, meu único trabalho foi remeter-lhe o texto do artigo Vocabulário Mutante, de Antônio Goulart, publicado na ZH de 24 de setembro, em que vem registrado, muito oportunamente, o fato de que hoje em dia, além de um braço ou uma perna, uma situação também pode ser engessada, ou de que pessoas, e não apenas lanternas, podem estar focadas - incluindo, no pacote, todas as novas significações que adquiriram termos como o próprio pacote, além de centrado, nicho, alavancar, clima ou, como falávamos, descolado.
Pois é essa atribuição de novos significados a vocábulos velhos - e não a criação de vocábulos novinhos em folha - o verdadeiro fermento que faz os dicionários engordarem.
Na mesmíssima semana em que um amigo compareceu com descolado, outro veio em busca de informações sobre fiteiro, numa frase em que um veterano homem de imprensa se queixava do predomínio de um tal de " jornalismo fiteiro".
"Diz aí do que se trata, Moreno, porque para mim - e para minha avó, aliás - fiteiro era guri dengoso, que caía no choro por qualquer coisa".
Confesso que também não conhecia esse uso; saí no rastro e descobri o que não sabia: neste caso, o jornalismo fiteiro é aquele que aproveita a transcrição pura e simples de grampos, fitas e dossiês, tomados como fontes fidedignas para a reportagem.
Ao longo da minha pesquisa, porém, encontrei uma estranha incoerência na explicação que dois de nossos melhores dicionários - o Houaiss e o Aulete - dão para fita (aquilo que o guri fiteiro faz): ambos (por uma estranha coincidência!) dizem que vem do Latim ficta, "fingimento", feminino do particípio fictus - e dê- lhe Latim para baixo e para cima, que nem todos conhecem mas até o Diabo respeita.
Quer dizer que "fazer fita" seria então "fazer fingimento"? Mas que vergonha, seus lexicógrafos! Não lhes ocorreu pesquisar os textos escritos em Português nestes últimos quinhentos anos para perceber que a palavra fita nunca foi usada neste sentido antes do séc. 20, ou seja, antes da criação e da divulgação do cinema?
Não leram Vinicius? Ele diz que fazer fita "é de proveniência cinematográfica. A fita é hoje a espécie brasileira do show off. Fiteiro é todo aquele que em pequenos jeitos ou modos de ser procura criar uma outra personalidade, na falta ou na pobreza da sua própria".
Não leram O Tempo e o Vento? - "A dona Vanja é uma velha fiteira. Fiteira! Ali estava uma expressão nova trazida pelo cinematógrafo, o qual já começava a exercer uma sensível influência sobre o povo. Agora quando uma pessoa era teatral na maneira de falar ou gesticular, quando gostava de ostentações ou se dava a exageros _ dizia- se que ela era fiteira".
Não leram? Pois foi o que pensei.
NOTA: aproveito para informar aos amigos que inicia, no dia 21 de outubro, na Casa de Ideias, no Shopping Total, nova turma do meu curso de Revisão Geral do Português.
Mais detalhes pelo e- mail contato@ casadeideias.
Opinião
Cláudio Moreno: Fiteiro
Colunista vai atrás do significado da palavra "fiteiro" e encontra mais do que procurava
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