Como em outras peças de Samuel Beckett, em Oh, os Belos Dias, que terá sessões no sábado (21) e no domingo (22), no Teatro Renascença, o autor irlandês dissipa o desenvolvimento da ação ao substituí-la por uma situação em que as personagens não chegam a agir no mundo das coisas. Sabe-se que ele escreveu-a durante os meses em que, no final de 1960, viveu em Paris, próximo à prisão de La Santé. As fileiras das grades do sinistro prédio e a lembrança de como os homens deviam viver em suas celas provocaram nele tamanha angústia que, para completar a gênese de Oh, os Belos Dias, faltaria apenas um tanto de John Milton como de Jean Racine: do primeiro, refletindo a sombra e a luz que se alternam na atmosfera da peça; do outro, ressoando os longos monólogos de uma situação estática.
O que há algumas décadas foi a grande inovação do drama mundial, hoje parece determinar excessivamente o tratamento da cena. As ousadas criações de Beckett aprisionam hoje a originalidade dos artistas tanto quanto na ficção as personagens de Racine vivem num mundo inalterado. A direção do paulista Rubens Rusche opta por salientar a essência do texto, sem margem para o formalismo. O brilhante encontro com os atores Sandra Dani e Luiz Paulo Vasconcellos não faz concessão à face estilizada do teatro contemporâneo e parte de uma espécie de psicologia da recordação para encontrar a prosódia que tira partido dos momentos mais sutis da peça. A ironia está presente no modo como Sandra personifica uma Winnie verossímil e cheia de carisma num universo que tem sua origem no absurdo. Não é um espetáculo de fácil fruição. O mérito da concepção de Rusche é o modo como interpreta os motores do teatro de Beckett - o tempo, o espaço e o discurso, em cadência precisa em que as palavras adquirem sentido pela associação e repetição, em fluxo pausado, mas contínuo. A relação entre as minúcias e o todo é engrandecida por Sandra, que se serve da maturidade dos que saboreiam o aqui e agora da fala sem perder o andamento do todo.
Ao sugerir as dúvidas da alma e os temores do coração sem abdicar da comicidade, Sandra entra no rol de atrizes que alcançaram o sublime com Winnie. A ela (como em Paraíso Perdido, de Milton, de quem o próprio Beckett tomou emprestado): "Salve, ó luz primogênita do Empíreo", lugar reservado a anjos, deuses e seres abençoados.