Os pais desejavam que ele seguisse a carreira de advogado, médico ou se tornasse padre. Mas Joseph Marie Garibaldi queria ser herói. Em 75 anos de vida, o homem mais conhecido como Giuseppe Garibaldi (1807 - 1882), nascido de família italiana em uma cidade sob domínio francês, Nice, realizaria o seu desejo e se tornaria célebre graças a uma combinação de espírito de aventura, talento guerreiro e apetite para o romance - mas também devido a um eficiente esquema de autopromoção. Livros publicados nas últimas semanas por autores brasileiros recontam sua escalada ao patamar de mito e ajudam a entender por que sua figura ainda desperta admiração.
Em Garibaldi na América do Sul: o Mito do Gaúcho, o jornalista e cientista político Gianni Carta se dedica a revelar alguns dos mecanismos por meio dos quais o intrépido italiano construiu sua imagem ao longo dos anos até consolidá-la nas estátuas em sua homenagem. Ele se serviu de oito anos de pesquisa para demonstrar como Garibaldi foi um hábil estrategista no uso da imprensa e da literatura em favor de sua promoção pessoal - que tinha como objetivo secundário dar destaque a causas como a unificação italiana e a implantação da República e credenciá-lo a liderar movimentos populares em benefício delas.
A adoção da indumentária do gaúcho por Garibaldi, para espanto de muitos europeus e encanto de outros tantos, contribuiu para a composição final de seu personagem histórico quando retornou para a Itália após 13 anos vivendo, lutando e amando na América do Sul. Segundo Gianni Carta, a apropriação de elementos do homem do pampa - figura que o revolucionário aprendeu a admirar durante estadas no Rio Grande do Sul, no Uruguai e na Argentina - tinha o objetivo de fornecer a identidade visual de que todo herói necessita. Por isso, o comandante naval da Revolução Farroupilha fazia questão de posar de boina, poncho sobre uma camisa vermelha e, sempre quando possível e mesmo sem ser um grande cavaleiro, montado sobre um cavalo.
- Heróis precisam de figurinos. Além disso, estávamos na época do Romantismo, e o poncho dava a ele um aspecto tanto de guerreiro quanto de franciscano - afirma Carta, que lançará sua obra na Capital, na segunda-feira, na Livraria Cultura do Bourbon Country.
O autor relata que o aventureiro de Nice soube usar a imprensa para propagar essa imagem e os seus feitos de forma ainda mais hábil do que Napoleão, outro expert em divulgar a si mesmo a ponto de dispor de dois jornais para isso. Garibaldi contou com o apoio de um punhado de jornalistas e, mais tarde, do célebre romancista francês Alexandre Dumas, que escreveu inúmeros artigos e livros como o famoso Memórias de Garibaldi.
Quando o italiano invadiu a Sicília, em 1860, sua comitiva incluía a jornalista britânica Jessie White Mario e Dumas, também autor de Os Três Mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo. As condições de viagem do escritor francês, aliás, eram de dar inveja a qualquer correspondente de guerra atual: a bordo da embarcação, seguiam com ele centenas de garrafas de vinho e champanhe, além de uma jovem amante chamada Émilie Cordier.
- Garibaldi usou os repórteres de uma maneira como nunca havia sido feita até então. Ele viajava com jornalistas, era amigo deles. As mulheres de vários países o amavam porque viam as litografias dele nos jornais - acrescenta Carta.
A difusão do daguerreótipo (antiga técnica de fotografia sensibilizada sem negativo), nos anos 1840, ampliara o impacto dessa exposição. Cada vez mais, os cabelos longos e aloirados, a barba ruiva e os olhos claros do chamado general do Risorgimento (movimento de unificação da Itália) ganhavam o mundo em versões que o aproximavam da imagem idealizada de Cristo.
A rede de divulgação incluía ativistas importantes do porte de Giuseppe Mazzini, líder republicano italiano exilado em Londres, de onde publicava matérias sobre o conterrâneo em jornais de línguas variadas, como italiano, francês e inglês. Faziam parte do núcleo de imprensa, ainda, os italianos radicados na América do Sul Luigi Rossetti (1800 - 1840) e Giovanni Battista Cuneo (1809 - 1875).
Rossetti trabalhou como editor do jornal oficial da República Rio-Grandense, O Povo, de setembro de 1838 a março de 1839. Nesse posto, publicou os primeiros artigos que podem ser encontrados ainda hoje descrevendo o chamado herói de dois mundos como um "homem de ação". O jornalista morreria pouco tempo depois, em 1840, durante uma batalha contra tropas do Império brasileiro em uma região que hoje faz parte do município de Viamão.
Cuneo teve papel ainda mais ativo na máquina de propaganda garibaldina. Ele enviava para o colega Mazzini, em Londres, as notícias das vitórias do líder militar na América do Sul. De Londres, as façanhas do general corriam o mundo. Quando retornou à Europa, em 1848, Cuneo escreveu uma biografia de Garibaldi em que ressalta suas qualidades desde a juventude, quando já salvava pessoas do afogamento graças à habilidade como nadador. Conta-se que, com apenas oito anos, já havia retirado uma mulher do mar. O autor conclui a obra deixando transparecer um de seus propósitos: afirma que Garibaldi, então no exílio, ainda voltaria à Europa a fim de lutar pela unificação italiana - o que de fato ocorreu.
Cuneo e Mazzini, porém, acabariam dando lugar a Dumas como principal divulgador dos feitos do herói. Entre as razões para isso estão o peso literário do escritor francês e as divergências políticas entre Garibaldi, Cuneo e Mazzini sobre o melhor caminho para reunir a Itália e transformá-la em uma república.
O professor de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Cesar Augusto Guazzelli afirma ser difícil garantir que Garibaldi agiu de maneira calculada ao assumir e ostentar traços do gaúcho como a camisa vermelha que costumava usar por baixo do poncho - possível referência ao lenço rubro dos farrapos e ao Partido Colorado do Uruguai, onde também lutou:
- É razoável supor que tenha levado os adereços comuns aos cavalarianos do Sul como mais um elemento dessa composição do personagem. Mas é difícil saber se isso foi proposital ou ele simplesmente achou adequado. O fato é que, no século 19, em um período de formação das nações, existia a necessidade de símbolos positivos como Garibaldi.
E a vida do guerreiro farroupilha deixou fácil o trabalho de seus biógrafos ao engrandecer e propalar seus feitos. O italiano levou uma vida digna da melhor literatura, como comprova outro lançamento recente, Garibaldi: Herói dos Dois Mundos, de Maurício Oliveira. Menos crítico e mais descritivo, o livro repassa a vida de seu personagem desde a infância até as principais batalhas - incluindo seus feitos ao lado dos farroupilhas rio-grandenses - os romances ardentes e a morte sob más condições financeiras e de saúde na ilha Caprera, na Itália.
O livro de Oliveira destaca, ainda, o perfil austero do biografado. Ao longo de sua vida, recusou benesses de diferentes governos e esteve sempre em dificuldades financeiras. Diz-se que, quando viveu no Uruguai, morava em uma casa tão simples que nem mesmo contava com velas para iluminá-la à noite. Arriscou a vida pelas causas em que acreditava a ponto de ser preso, torturado, ferido à bala no pescoço, além de sofrer outras desventuras como a morte de sua amada Anita e de filhos em razão de doenças. Fugiu diversas vezes de captores, outras tantas foi libertado, foi condenado à morte, navegou, cavalgou e andou por diferentes países.
- Há quem queira diminuir o papel dele na unificação italiana, dizendo que foi mais um agitador das massas do que um estrategista. Mas o fato é que ele teve mais emoção, em alguns dias da sua vida, do que a maioria das pessoas têm em uma vida inteira - resume Oliveira.
Garibaldi fez da própria vida sua maior obra de divulgação.