"É que eu viajo para me abandonar", me disse Rafael quando atingimos o topo da montanha. Visto do alto, o chão é sempre bonito. A praia, a cidade, a ilha, o sol caindo atrás dela - a vista do alto comprova a superioridade da geografia sobre a história. A geografia arranca o homem do centro e insere a natureza no protagonismo dos acontecimentos. A arrogância é histórica, nunca geográfica. "Viajar é geografia", pensei em responder, mas o vento no topo das montanhas é sempre forte demais para que as palavras sejam ouvidas.
O viajante histórico depende de mapas. O viajante geográfico, de cartografia. O mapa, conjunto de linhas duras, opõe-se à cartografia e aos seus registros de tudo o que muda.
Quando a noite cai, estamos no centro da pequena cidade, misturados entre nativos cuja língua não somos capazes de compreender. Nem queremos. Quase vazias de turistas, as ruas de areia, nos meses de inverno, abrem espaço para o vazio. Geográfico é o viajante disposto a abandonar o seu próprio eu e a permitir que o novo o contamine. Talvez o verdadeiro sentido da viagem seja a possibilidade de se diluir no local visitado.
Os povos ciganos, nômades, por mais que viagem, vivem eternamente presos em suas barracas, conservando seus costumes, casamentos, tradições. Por mais que partam, nunca se arrancam de si. Assim é o viajante histórico que, iniciada a viagem, trata de proteger o eu ao invés de desfazê-lo. Blindados no que foram antes de terem partido, escravos da própria biografia, não experimentam o que de mais potente pode existir na viagem: a possibilidade de vir a ser completamente outro, em um mundo absolutamente outro. Por mais utópico que tal estado possa ser, é preciso desejá-lo. O corpo disposto ao novo está mais perto dos acontecimentos.
Há quem acumule largas quilometragens e, no entanto, continue o mesmo. "Viajantes de resorts", define Rafael. Estamos talvez na terceira garrafa de uma bebida que só existe aqui. Potencializadas pelo álcool, as convicções se afiam, e o desdém que sentimos por aqueles que não ousam ousar cresce um pouco mais a cada gole. Os nativos, à nossa volta, são uma profusão de possibilidades. O pequeno boteco, à medida que a noite avança, torna-se uma língua cada vez mais possível de ser compreendida. Tudo é novidade para os nossos olhos viajantes. Eles, cientes de nossa diferença, por nós também se interessam, e um diálogo que não precisa de palavras ousa acontecer.
Viajar, e seguir o mesmo, talvez seja o oposto da viagem. Voltar diferente é para quem tem coragem.