1. Professor de Português nunca pode relaxar; devemos estar sempre em estado de alerta, prontos para entrar em ação, seja lá onde for. No supermercado, na pracinha, no elevador ou até mesmo, como vamos ver, numa blitze (em sua forma aportuguesada, com o plural blitzes) da Polícia Rodoviária, nunca podemos prever quando vai cruzar nosso caminho um brasileiro portador de dúvida (não, não me rendi àquela baboseira do politicamente correto). Desta vez foi num hotelzinho na serra, diante de um possante fogão a lenha. A proprietária, muito hospitaleira, tinha cozinhado para nós sua última reserva de pinhões desta safra e assistia, interessada, ao ritual da família - o escravo aqui a descascá-los no dente, e minha filha pequena a comê-los alegremente, sem remorso algum, com sal e azeite de oliva. Declarando-se leitora desta coluna - "Leio sempre o que o senhor escreve; fui professora primária e nunca perdi o gosto pelo Português" -, ela puxou da algibeira duas "dúvidas cruéis": (1) por que a gente diz azeite de oliva e não de azeitona, e (2) por que usamos óleo, e não azeite, quando vem da soja. Prometi pesquisar (raramente me arrisco a responder assim, de bate-pronto, a perguntas sobre etimologia; as chances de fazer uma burrada, acredite, são imensas).
Pois vamos à primeira dúvida: do Latim oliva, introduzido pela dominação romana na Península Ibérica, veio o clássico oliva, usado inicialmente em Portugal e na Espanha. No entanto, quando os árabes entraram na região, no séc. 8, com eles entrou também o nome azeitona (az-zaituna), que passou a predominar sobre oliva. Este, apesar de substituído, ainda pode ser visto nas expressões "azeite de oliva" e "verde-oliva" (cor), além de participar, como radical, de oliveira, o que criou este exemplo raríssimo de árvore cujo nome não deriva, como as demais, do fruto que produz (figo: figueira; pitanga: pitangueira; e assim por diante). Nos países que não tiveram a presença árabe, porém, o nome da azeitona até hoje é derivado da forma latina: olive (Ing.), olive (Fr.), oliva (It.).
A segunda pergunta também encontra sua resposta nesta dicotomia entre o Árabe e o Latim. Nosso óleo vem do vocábulo latino oleum ("azeite de oliva"), que entrou nos idiomas mais importantes do Ocidente - oil (Ing.), olio (It.), huile (Fr.), Öle (Al.) - para designar genericamente qualquer substância gordurosa em estado líquido. Contudo, por causa da influência árabe no mundo ibérico (muita gente esquece que os árabes conviveram com nossos antepassados por mais de sete séculos, do séc. 8 ao séc. 15), o Português distingue o azeite (de az-zait, "azeite de oliva") do óleo (daí o óleo diesel, o óleo de soja, de arroz, de rícino, de amendoim, de girassol, de milho, de canola, etc. - sem esquecer o terror das crianças da minha geração, o repugnante óleo de fígado de bacalhau). Esta dicotomia não existe nos outros idiomas, que denominam o nosso azeite de olive oil (Ing.), huile dolive (Fr.), olio di oliva (It.) e Olivenöl (Al.).
2. Um patrulheiro rodoviário a quem mostrei os documentos do carro, no mês passado, aproveitou também (era um ex-aluno) para tirar uma casquinha: que substituto eu sugeriria para jet ski, agora que a poderosíssima Kawasaki tinha ganho na justiça os direitos de usar, com exclusividade, esta marca? E acrescentou: "E o pior: deu no Facebook que ela vai processar quem desrespeitar sua propriedade. Uma empresa estrangeira pode fazer isso com palavras nacionais?". Ora, em primeiro lugar, "deu no Face" é a versão atual para o velho "deu no jornal" ou "deu na TV" - ou seja, é uma informação que tem 90% de probabilidades de ser apenas conversa para boi dormir.
Em segundo lugar, a língua é soberana e não dá a mínima para meros acordos e regulamentos de propriedade industrial. Por isso, não acredito que a empresa - a não ser que fosse dirigida por um maluco de pedra - venha a tentar proibir que se use o termo jet ski para designar genericamente essas barulhentas motinhos aquáticas que infestam nossas águas costeiras. Em todas as línguas do mundo, frequentemente nomes industriais terminam se transformando em substantivos comuns. Por exemplo, aspirina, bandeide, celofane, celuloide, fórmica, gilete, granola, heroína, jipe, querosene, mimeógrafo, pirex, tabloide, vaselina, velcro, ioiô, zíper, chiclete, cotonete, xerox já estão dicionarizadas. Todas elas vieram de marcas registradas que passaram a fazer parte de nosso léxico (com as devidas adaptações morfológicas e ortográficas: Band-Aid, por exemplo, virou bandeide; Gilette virou gilete). A posição da Kawasaki, é claro, vale entre fabricantes de jet skis, que não têm o direito de dar este nome a seus produtos. Nós, porém, simples civis, usaremos a palavra sempre que nos der na veneta.
O prazer das palavras
Cláudio Moreno: Azeite de Oliva
'Por que a gente diz azeite de oliva e não de azeitona?'
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