Foi-se agosto, o mês do suicídio de Getúlio Vargas - que completará 60 anos em 2014. Este será um ano insuflado por novas interpretações acerca de uma das figuras mais importantes e controversas da política brasileira. Assim, para 2014, estão previstos os lançamentos do último volume da biografia do jornalista Lira Neto (o segundo foi lançado há pouco), bem como do filme Os Últimos Dias de Getúlio, estrelado por Tony Ramos e com produção executiva de Carla Camurati. A complexidade humana, a importância política e os significados oriundos da trágica morte - Vargas, ao lado dos chilenos Balmaceda e Allende, configura a tríade americana de presidentes suicidas - têm feito com que o sujeito migre do âmbito histórico para outros campos, a fim de ser recriado e reinterpretado.
Em minha tese em Literatura Comparada, defendida em 2012, estudei como a literatura recria o personagem em distintos escritores, entre eles Erico Verissimo. Os autores estudados, sem exceção, operaram consistente investigação de documentos, testemunhos e linhas de interpretação histórica, que são manejados de maneira particular em relação ao estilo de cada um e às convenções de cada gênero literário. O suicídio mostrou-se um nó que amarra as diversas narrativas, em cuja figuração - ou menção cifrada (caso de Erico) - organiza, de maneira singular, os móbiles e interpretações. Interessa aos escritores o caráter e o significado da morte do presidente que meteu uma bala no coração após cumprir sua palavra, de que não toleraria a ignomínia de uma deposição que desonrasse o cargo para o qual o velho ditador fora democraticamente eleito em 1950. A representação da morte de Getúlio configura, assim, uma encruzilhada em que se borram os limites do suicídio e do homicídio e para a qual confluem a sagacidade política, os anseios pessoais de honra e um perturbador pijama listrado - afinal, por que não passar à história de terno?, pergunto, inspirada nas provocações de Carlos Lacerda, o mais feroz oposicionista de Getúlio.
O estudo de O Retrato e O Arquipélago (os dois últimos tomos da trilogia O Tempo e o Vento) foi dos mais instigantes, e com ele se observa a crescente importância de Getúlio na narrativa conforme o tempo avança. O Retrato I começou a ser escrito em 1950 e foi publicado em 1951. Este é o ano da volta triunfal de Getúlio ao poder após o autoexílio na fazenda de Itu como presidente democraticamente eleito. Já neste tomo, no capítulo Uma Vela pro Negrinho, aparece um balanço da desintegração do Estado Novo (sob o prisma de Santa Fé de 1945, ano da deposição de Getúlio). Quando Erico lança o último volume da trilogia, O Arquipélago III, em 1962, o autor já havia vivenciado o suicídio do presidente, a renúncia de Jânio Quadros e o evento da Legalidade. Já havia transcorrido, portanto, quase uma década do suicídio do presidente, e sobre isto, na trama, apenas algumas indagações a respeito da personalidade suicida do presidente. Essa é a opção de Erico, narrar a trajetória de Getúlio até 1945 e lançar sobre este ano alguns indícios sobre o fato que acontecerá em 1954. O Tempo e o Vento se encerra, assim, sintomaticamente, em 1945, em plena Campanha Queremista. Num paralelo ao retorno de Getúlio ao Rio Grande do Sul, no qual empreendeu um longo retiro no chamado exílio de Itu, também retorna do Rio de Janeiro a Santa Fé, com a saúde fatalmente desintegrada, Rodrigo Cambará, um dos homens do Estado Novo que partira junto de Getúlio no trem que conduziu esses homens na empreitada revolucionária de 1930. Cambará, homem próximo a Vargas, será um personagem importante mediante o qual - em confronto com outros - o leitor poderá acercar-se ao Getúlio deputado, presidente da província, revolucionário e ditador.
Ao longo dos cinco volumes de O Retrato e O Arquipélago, Getúlio é perspectivado por outros personagens sem que jamais enuncie em primeira pessoa ao longo da trama ou tenha sua consciência desvelada. O narrador de Erico, em lugar da onisciência, prefere acercar-se do personagem através das lentes dos personagens, para, assim, cada um deles evidenciar um aspecto da complexa e multiforme representação que se tem do sujeito no plano histórico. O Tempo e o Vento, desta maneira, opera uma verdadeira polifonia, cujas expressões antitéticas vão do getulismo ao antigetulismo. O procedimento narrativo de Erico permitirá mascarar a própria opinião do autor acerca de Getúlio, mas a curiosidade de saber o que o político representava para o romancista levou-me à extensa pesquisa no Arquivo Literário Erico Verissimo (ALEV), abrigado no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro. Para minha surpresa, quem também se encontrava no Instituto à época, para uma conferência acerca de Erico e sua última obra, Incidente em Antares (em que Getúlio tem presença marcante), era Luis Fernando Verissimo, e eu aproveitei, em rápido apartado com este, para perguntar sobre o que pensava seu pai acerca de Getúlio. A resposta foi, presumidamente, econômica em palavras, em consonância com o estilo de Luis Fernando. Argumentara-me, na ocasião, que, sendo Erico um humanista, um democrático, alguém que não tolerava o Estado Novo, e que rumou aos Estados Unidos na década de 1940 (quiçá para ver-se longe dos horrores da ditadura, tal qual afirma seu alter ego na obra, Floriano Cambará), é bastante crível, se não óbvio, que não apreciava Getúlio. Sentenciara Luis Fernando: "Não, papai não podia gostar de Getúlio". "As respostas para estas suas perguntas" - instigava-me Luis Fernando - "bem podem estar no arquivo."
Saí da conversa, que encerrava uma semana de pesquisa, convicta de que precisava de mais tempo, de forma que estendi a temporada em mais três semanas no Instituto, que fecharia para o feriado de Carnaval. Neste dia, disse adeus à Bahia, para onde tinha passagem comprada. Ficaria no Rio buscando alguma pista de Erico, o homem, sobre Getúlio. Um observador externo sentenciara que eu fazia uma opção pelo Carnaval carioca em detrimento do baiano, mas não há, muitas vezes, uma explicação racional a guiar os instintos do pesquisador.
Algumas semanas de pesquisa, e lá estavam as provas do apreço de Erico para com Getúlio, expresso em duas cartas remetidas desde Washington a Porto Alegre (uma do dia 25, manuscrita a lápis e cujo destinatário é oculto num "Amigo caro", e outra do dia 26, datilografada, porém datada e assinada a caneta). Elas demonstram o impacto sofrido pelo romancista com a morte do estadista: "Desde ontem estou abalado ante o último acontecimento político do Brasil. Getúlio me pegou de surpresa: seu suicídio foi um gesto dum alcance humano, político e social incalculável. Que homem tremendo! Com esse derradeiro golpe ele venceu seus inimigos, salvou seu nome e deu uma bandeira revolucionária a seu partido. A morte do Cap. Vaz será esquecida. Lacerda passará a ser o vilão da peça e Getúlio o herói. Que grande golpe!". Ansioso por notícias acerca dos distúrbios ocorridos na capital gaúcha e do "empastelamento" do Diário de Notícias, Erico confessa: "Não tenho podido me concentrar no trabalho. Espero melhorar amanhã".
Já a missiva do dia 26 é destinada "à amiga Bega". A esta, Erico confessa estar "ainda meio tararaca diante das notícias que a cada instante nos chegam do Brasil. O Getulinho, então nos deu a grande surpresa. Que homem! Até a própria vida ele usou como golpe político. Não quero tirar o valor do gesto dele, não. Foi macho. Teve morte de homem e seu suicídio tem um alcance histórico muito grande." Em tom confidencial, expressa os motivos que teriam levado Getúlio a suicidar-se: "Cá para nós, acho que o maior desespero lhe veio não propriamente de saber que ia ser deposto, mas de verificar que todas as falcatruas da família e dos amigos iam ser reveladas. Com o suicídio ele destruiu (pelo menos provisoriamente) os inimigos, limpou-se, projetou-se na Historia [sic] e deu uma bandeira de combate aos seus amigos e seguidores. Temos estado muito preocupados com os acontecimentos do Brasil [...] A carta de Getúlio é uma acusação clara aos Estados Unidos. Que homem infernal! Que político! Mas seja como for, fiquei com pena dele".
Impossível de ser inferida pela obra, neste documento primário está expressa a simpatia do autor para com Getúlio e a aversão a outras personalidades próximas a ele: "Fiquei com pena dele. Eu gostava do baixinho como pessoa. Ele sempre me tratou bem e eu o achava simpático. O que eu não tolero são as Alziras, os Luteros, os Amarais Peixotos, os Gregorios [sic] e o resto da capangada."
A profusão de representações literárias de Getúlio é paradigmática da personalidade round do sujeito histórico, e a sensibilidade de Erico em relação a ele, o mais importante político de sua época, parece não ter sido óbvia e evoluiu de maneira não linear, como foi o Getúlio revolucionário, o ditador e o presidente democraticamente eleito em 1950. Como refere Roque Bandeira ao personagem Floriano Cambará, são enormes os desafios para o ficcionista que se debruça no tempo presente: "Ao percorreres os campos e almas do Continente, serás guiado pelo radar da tua imaginação, da tua intuição poética. Mas à medida que te fores aproximando dos tempos modernos, ficarás confundido e desorientado pela abundância de material, pela riqueza de sugestões e informações (livros, jornais, revistas, depoimentos pessoais) e também pelo fato de passares a ser, tu mesmo, uma testemunha da História".
Noutro momento, o mesmo Bandeira refere-se à atividade do amigo ficcionista nos seguintes termos: "Vocês escritores de ficção contam com um admirável sistema excretório. O romancista mais cedo ou mais tarde acaba defecando os seus problemas". Se aceita a tese de Bandeira, a de que o romancista digere as questões de seu tempo e as excreta em problemas e temas literários, pode-se afirmar, mediante a leitura atenta dos dois últimos tomos da trilogia, que Getúlio foi um enorme problema para o ficcionista, que optou, talvez em virtude da proximidade do tempo, encerrar a trilogia com a derrocada do Estado Novo e com a morte de um de seus figurões, Rodrigo Cambará, o amigo de Getúlio.
Visão romanceada
A partir da presença de Vargas na obra de Verissimo, pesquisadora investigou o que o político representava para o escritor
Em cartas enviadas de Washington, Verissimo expressa seu apreço por Vargas diante do impacto do suicídio
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