Aquela parecia ser uma festa típica de domingo no bairro de Venice. Uma banda, alguns tipos de Hollywood, opções vegetarianas no menu e uma vizinha reclamando do barulho.
- Vocês estão me incomodando! - gritou a vizinha, que apareceu na porta dos fundos. - Estou exausta, tenho que trabalhar. Vocês precisam parar!
O dono da festa prometeu que a música já ia acabar e a levou de volta para casa. A banda tocou mais uma música, eram 18h50min.
Os convidados pediram alguma coisa para comer.
- Não sei - afirmou Yasser Kareem, de 27 anos, abanando as mãos exageradamente. - Acho que a incomodada vai voltar.
A mensagem era muito clara: lá em Bagdá, festas barulhentas não são o tipo da coisa que gera reclamação.
Mas em Los Angeles, quase tudo era uma surpresa para Kareem e seus colegas de viagem, aspirantes a cineastas do Iraque, que vêm à cidade de tempos em tempos para fazerem cursos e descobertas, incluindo as que se pode fazer no calçadão de Venice Beach.
- Eles nunca viram pessoas de países diferentes, nem gente dançando na praia - afirmou Atia al-Daradji, de 47 anos. - Nem a praia, ou mulheres seminuas.
Ao lado do irmão, o diretor Mohamed al-Daradji ("Filho da Babilônia"), Daradji fundou o Centro de Filmes Independentes do Iraque, em Bagdá, que trabalha com aspirantes a cineastas e selecionou o grupo para a viagem aos Estados Unidos.
- Eles são jovens - afirmou sorrindo. - Certamente sairão daqui com uma visão de mundo diferente. Eles já estão perguntado: 'Por que não temos isso no Iraque?'
O que eles não têm é uma indústria cinematográfica, algo que está sendo resolvido - até certo ponto - pela ONG International Film Exchange. O intercâmbio trouxe os estudantes de Bagdá, onde semanas antes o cinegrafista Bill Megalos, de Los Angeles, havia realizado um workshop de 10 dias sobre narração e edição.
O projeto é dedicado principalmente ao intercâmbio cultural e à compreensão internacional. Porém, no caso dos iraquianos, ele pode ajudar a criar uma base de cineastas bem formados, uma "equipe", conforme os próprios jovens diziam. Desde as sanções econômicas impostas ao Iraque após a Guerra do Golfo, fazer filmes se tornou praticamente impossível.
- O cinema era um negócio familiar - afirmou Salam S. Mazeel, de 35 anos, cuja mãe era designer de som e que queria ser cinegrafista como o pai. - Mas nos anos 90, tudo parou. Passamos por tempos difíceis, sem dinheiro, nem esperança.
Depois que o pai morreu, a mãe teve que abandonar a carreira para cuidar dos filhos e, de qualquer forma, não se faziam mais filmes no país.
- Foi assim que tudo aconteceu - afirmou Mazeel. - Agora, algo talvez esteja diferente, nós viemos aos Estados Unidos e temos algumas coisas em mente. Por exemplo, como aplicar as regras americanas aos filmes feitos no Iraque.
As instruções sobre essas regras foram passadas de várias formas. Em um campus verdejante da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, Mazeel e seus colegas, incluindo o ruivo de 21 anos Omid Khald - cuja reação ao Oceano Pacífico foi dar um mergulho - ouviam pessoas como o ex-diretor da Universal Pictures, David Linde, e a roteirista Linda Voorhees, que falou sobre financiamento e estrutura narrativa.
Durante uma viagem para o bairro de Westwood, com seus palácios cinematográficos ao estilo antigo, os iraquianos puderam ver o que nunca tinham visto: um filme em um cinema ("Homem de Aço", do qual gostaram muito).
A festa de domingo na casa de Megalos recebeu diversos veteranos do cinema, incluindo o diretor Jeremy Kagan e o compositor ganhador do Oscar Barry Morrow ("Rain Man"), que falaram com os jovens sobre suas expectativas, seus roteiros e os filmes que planejavam fazer no verão no Iraque. (Trazer estudantes do sexo feminino seria uma impossibilidade cultural, já que jovens iraquianas não podem viajar com homens que não sejam seus parentes.)
- Eles estão tão famintos - afirmou Morrow - que tenho medo de dar informações ruins, de dizer algo muito irreverente, que eles entendam errado.
Megalos concordou:
- Eles levam as coisas ao pé da letra.
Morrow afirmou que o método socrático ainda era o melhor: "Eles me perguntavam o que acho de Tarkovsky. Porém, é preciso devolver a questão e perguntar o que eles acham de Tarkovsky."
A conversa sobre Andrei Tarkovsky simboliza o abismo cultural com o qual eles lidam. Há anos, os cineastas iraquianos frequentavam a VGIK, a escola de cinema em Moscou; os filmes iraquianos eram muito mais influenciados pela estética europeia, do que pelo cinema americano. Em Los Angeles, os visitantes iraquianos eram aconselhados por quase todo mundo a esclarecerem as histórias, enfatizando a narrativa ao invés do estilo.
- Os filmes de Hollywood chegam a todos os lugares - afirmou Kate Moulene, diretora de marketing do Instituto the Humpty Dumpty, responsável pelo International Film Exchange. - Aqui eles descobriram como contar histórias para o maior público possível.
Os cinco visitantes puderam conhecer as instalações da UCLA, da empresa de produção Blue Collar, a placa com o nome Hollywood (obviamente) e "Guerra Mundial Z" em 3D, embora a possibilidade tenha deixado Megalos apreensivo.
- Eles poderiam não adorar zumbis tanto quanto os americanos - afirmou.
A decisão não foi unânime: os mais jovens adoraram, os mais velhos fugiram do assunto. ("Os Estados Unidos e Hollywood sempre salvam o mundo", disseram.)
Megalos realizou oficinas para ONGs em Uganda, Quênia e no Laos, onde chamou a atenção de David Prettyman, diretor estratégico do Instituto Humpty Dumpty.
A missão original do instituto era remover minas e "ainda fazemos isso", afirmou Prettyman, que estava em ação enquanto os iraquianos passeavam por Hollywood.
- No entanto, nossos interesses se expandiram para a compreensão cultural, a diplomacia e a educação do público americano acerca do resto do mundo, trabalhando com a ONU para alcançar esse objetivo.
Quando o grupo decidiu realizar o workshop em Bagdá, o financiamento veio da embaixada americana na cidade e alguém sugeriu que Megalos, que acabara de entrar no instituto, participasse.
- Os estudantes afirmaram que havia sido importante o encontro comigo em Bagdá - contou Megalos - por que eu havia sido o primeiro Americano que havia falado com eles sem um uniforme, e que isso representava uma visão de mundo que ia além da missão militar.
Assim como os compatriotas, Kareem trouxe consigo o roteiro de um curta metragem; e assim como os demais, o dele falava sobre uma criança: nesse caso, uma menina de nove anos que recolhe metal para vender, poupando para comprar o uniforme da escola. Certo dia, ela encontra um uniforme novo enquanto procura lixo.
- O slogan diz: 'Menina Encontra seu Sonho no Lixo' - afirmou Kareem.
Não é à toa que todos os estudantes faziam filmes sobre crianças: em Bagdá, Mohamed al-Daradji afirmou que filmes sobre crianças são uma porta de entrada para festivais internacionais.
E muito embora nunca tenha visto um filme de animação no cinema, Sajjad Abbas, o mais jovem dos viajantes - de 19 anos - estava planejando fazer um.
- É a história de uma criança que está sendo processada e quer se tornar um super-herói - afirmou.
E ele consegue?
- Claro.
Estranhos em Los Angeles
Viagem para Hollywood dá lições de cinema e de vida para cineastas iraquianos
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