A cerveja estava cheia de bactérias, quente e levemente azeda.
Pelos padrões contemporâneos, seria um lote estragado aqui na Great Lakes Brewing Co., cervejaria artesanal de Ohio, onde as máquinas despejam garrafas e mais garrafas de "porters" escuras" e "ales" claras.
Ultimamente, porém, a Great Lakes vem tentando imitar uma era passada. Requisitando a ajuda de arqueólogos da Universidade de Chicago, a empresa tenta há mais de um ano reproduzir a cerveja suméria de cinco mil anos usando apenas vasos de barro e uma colher de madeira.
- Como é possível estar neste negócio sem querer saber como os antepassados inventaram suas fórmulas e tecnologia - disse Pat Conway, um dos proprietários da empresa.
Como o interesse pela cerveja artesanal vem crescendo nos Estados Unidos, o mesmo se dá com as colaborações entre acadêmicos da bebida antiga e cervejarias independentes dispostas a ajudá-los a ressuscitar receitas perdidas de algumas das cervejas mais velhas já produzidas.
- A questão envolve muito trabalho de detetive, dedução e busca pela informação em outras fontes para tentar desvendar o mistério - disse Gil Stein, diretor do Instituto Oriental da Universidade de Chicago, entidade a garantir a precisão histórica do projeto.
- Nós reconhecemos que para obter a compreensão verdadeira desses diferentes aspectos do passado se faz necessário trabalhar com pessoas que sabem coisas que nós desconhecemos - completa.
Existe uma discussão não resolvida nos círculos acadêmicos que diz respeito a se a invenção da cerveja foi o principal motivo para o povo da Mesopotâmia, considerada o berço da civilização ocidental cerca de dez mil anos atrás, se tornar agricultores.
Por volta de 3.200 a.C, aproximadamente na época em que os sumérios inventaram a escrita, a cerveja já desempenhava um papel importante nos costumes e mitos da região. Bebida por canudinho por todas as classes sociais, também se acredita que ela tenha sido uma fonte de água potável e nutrientes essenciais, sendo fermentada em palácios e nas casas comuns. Durante o reinado de Hamurabi, os taberneiros corriam o risco de serem afogados caso ousassem cobrar demais.
Contudo, com todas as anotações que os sumérios fizeram sobre os ingredientes e a distribuição das bebidas, nenhuma receita exata foi encontrada. Ficaram apenas textos cuneiformes que dão dicas vagas do processo de fermentação, talvez nenhum mais poético do que o Hino a Ninkasi, deusa suméria da cerveja.
Datando de aproximadamente 1.800 a.C., a canção já arrebatou cervejarias modernas antes. Uma cerveja baseada no hino foi feita como parte de uma parceria, no começo da década de 1990, entre a Anchor Brewing Co., de São Francisco, e a Universidade de Chicago, onde uma bem conhecida interpretação do texto foi traduzida em 1964.
Desde então, reproduções de bebidas alcoólicas antigas ganharam popularidade, em grande parte em função da parceria entre a Dogfish Head Craft Brewery, Delaware, e Patrick E. McGovern, arqueólogo da química do Museu da Universidade da Pensilvânia. Em conjunto, eles recriaram cervejas da China pré-histórica, do antigo Egito e de indícios encontrados naquela que se acredita ser a tumba do rei Midas.
- Das diferentes pessoas que fazem bebidas fermentadas, as microcervejarias são as mais dispostas a experimentar. Elas estão prontas a tentar de tudo - disse McGovern.
A Great Lakes não pretende vender sua cerveja, também baseada no Hino a Ninkasi, ao público. Ao contrário de outros que recriam receitas antigas em equipamento moderno, o projeto é, acima de tudo, um exercício educativo. A coisa ganhou forma com a troca de e-mails entre especialistas em sumérios de Chicago tentando compreender a abordagem "fora dos padrões" que se mostrou mais difícil do que se imaginava.
Em vez de tanques de aço inoxidável, o Instituto Oriental deu à cervejaria vasos de cerâmica modelados de acordo com artefatos escavados no Iraque na década de 1930. Ao manter a evidência arqueológica, a equipe teve sucesso ao preparar o malte de cevada no telhado da cervejaria. Também se pediu ajuda a um padeiro de Cleveland na produção de um "pão de cerveja" com jeitão de tijolo para ser utilizado como fonte de levedura - com certeza a parte mais difícil do processo.
Com as carreiras dedicadas a estudar a cultura suméria, os arqueólogos afirmaram que ter cervejeiros profissionais envolvidos na iniciativa os ajudaram a fazer perguntas nas quais não haviam pensado.
- Ficamos consultando a evidência e encontrando novas dicas que possam nos ajudar a escolher entre as diferentes interpretações. Estamos mergulhados no estudo da Mesopotâmia, e este é um aspecto fundamental que não compreendemos por completo - disse Tate Paulette, doutorando e principal pesquisador do projeto.
Embora o projeto ainda não tenha acabado, os vasos de fermentação da Great Lakes já são uma atração popular aos passeios guiados pela cervejaria. A empresa pretende exibir a cerveja suméria em eventos em Cleveland e Chicago no final deste verão do Hemisfério Norte, oferecendo uma degustação pública da cerveja final ao lado da receita idêntica feita pelas técnicas mais recentes de produção.
Enquanto isso, ainda é preciso fazer alguns ajustes.
Após meses de experimentação no laboratório da cervejaria, Nate Gibbon, cervejeiro da Great Lakes, afirmou ter passado a última quarta-feira à beira de um barril cerâmico, cozinhando ao lado de um gramado. O fogo a aquecer o barril era alimentado por esterco.
O lote, temperado com cardamomo e coentro, fermentou durante dois dias, mas se revelou azedo demais para o paladar moderno, disse Gibbon. Da próxima vez, ele vai adoçar com mel ou tâmaras.
De acordo com os arqueólogos, sem sistemas de limpeza sofisticados para livrar os vasos das bactérias naturais, os bebedores mesopotâmicos talvez estivessem mais familiarizados com sabor avinagrado e indesejado da cerveja. Todavia, mesmo com os palpites mais bem fundamentados, eles acham que o paladar sumério talvez nunca seja recuperado.
- Estamos lidando com questões que nunca terão uma resposta final. É um vaivém, tentando seguir chegar mais perto de uma melhor compreensão. Estamos muito à vontade com isso - disse Paulette.