Então lá estou eu diante da prefeitura com meu coração vermelho no peito, que me acompanhou nos dias em que ainda dava para lutar pelas árvores da Beira-Rio, por uma Porto Alegre para as pessoas, não para os carros, por um projeto de cidade, não por uma cidade sem projeto. Lá está minha mãe com um botton estampando o símbolo da paz. Ele veio de São Francisco muito antes de eu nascer. Lá estão as tantas pessoas que eu conheci esse ano: arquitetos, professores, moradores do Centro, um monge budista, um mágico com tendências zapatistas, advogados, os que estão sempre de bicicleta, o homem que salvou a Gonçalo de Carvalho, o biólogo da SMAM que teme pelas palmeiras da Osvaldo Aranha. E o Ismael Caneppele. E a Katia Suman. E a Cláudia Tajes. Éramos, somos, muitos.
Esse é certamente um ano especial. Nós ocupamos praças e parques para ouvir música e tomar quentão. Brincamos com o fato de todas as semanas estarem cheias de protestos na lista de eventos do Facebook (isso antes das grandes manifestações de fato começarem a acontecer). Nós criamos um programa de rádio independente para discutir as questões da cidade. Ouvimos gente buzinar na rua, e eles nos diziam "vão trabalhar", quando o caso era justamente o contrário: estávamos dando tempo de nosso trabalho e de nossa vida pessoal em nome de uma causa. Hoje, quando as grandes manifestações enchem as avenidas, e os cantos ecoam, e os cartazes se sucedem pedindo um milhão de coisas mas talvez uma só, pode-se ver nas janelas as pessoas que acenam, que sacodem seus lençóis brancos, que jogam papel picado, e a gente ali embaixo se sente acolhido e cheio de esperança.
Cantamos o hino do Rio Grande do Sul. Acho que seremos os últimos a esquecer que isso tudo, a luta pela redução da passagem de ônibus, começou aqui, em Porto Alegre. Pouco importa, porque talvez o mais emblemático não seja o nosso bairrismo (esse já é esperado), mas o fato de que havia, na multidão, muitas bandeiras do Brasil. Tenho certeza de que eu não via uma bandeira do Brasil tão próxima de mim desde a Copa de 94. Aliás, a maioria dos manifestantes não tem idade para ter assistido à Copa de 94, mas outros são crescidos o suficiente para terem participado das Diretas Já e do Fora Collor. Eu estou no meio do caminho.
O poder da multidão é incrível, mas não é ilimitado. O poder da multidão é sobretudo o poder de deixar políticos confusos. As demandas são difusas, desencontradas? Na verdade, todas elas me parecem ter o mesmo núcleo duro: partem da dolorosa constatação de que a maioria dos políticos não está trabalhando pelos interesses do povo. Representar o povo é uma daquelas definições óbvias do metiê, e no entanto, na prática, uma empreiteira que financia campanhas eleitorais tem a voz mais potente que um milhão de homens. Mas é que os homens estavam calados e resignados e certos de que o Brasil seria eternamente cotado como o país do futuro.
Todos temos, em resumo, uma lista particular de reclamações, mas elas se tocam em inúmeros pontos. Fala-se muito em saúde e educação, por exemplo, e raramente em segurança pública. Eu simpatizo com isso. Movimentos que elegem a segurança como única bandeira costumam ser elitistas e umbiguistas, porque a segurança pública, grosso modo, é o único "revés" da desigualdade brasileira que literalmente bate na porta dos mais abastados. Quanto à saúde e à educação, desconfio que a maioria das pessoas que está saindo para a rua não depende nem do SUS, nem do ensino público, mas isso certamente não desqualifica as demandas, muito pelo contrário: mostra que nós enfim compreendemos que um país socialmente saudável, sem violência, só se constrói se diminuirmos as diferenças.
Há também demandas mais pontuais, e portanto mais fáceis de serem respondidas pelo poder público: uma rejeição completa ao PEC-37, ao Estatuto do Nascituro, a Marco Feliciano e à "cura gay" - é bom ressaltar, aliás, que o projeto da "cura gay" é de autoria do deputado João Campos (PSDB-GO). Em relação ao transporte público, os manifestantes - ou ao menos os meus amigos que estão lá, quase todos com mais de trinta anos - entendem que isenção de impostos e subsídios são medidas paliativas e, em alguns casos, equivocadas. Por que o poder público tira dinheiro de seus próprios cofres, e não ousa mexer na margem de lucro das empresas privadas?
Não custa lembrar que, em Porto Alegre, não temos licitação para o transporte municipal há mais de vinte anos.
Que a luta, portanto, continue. Eu nunca achei que vinte centavos valessem tanto.