Duas vidas em grande parte dedicadas ao Brasil renderam não apenas um, mas diversos livros. Na mais recente passagem pelo país, no final de maio, Gary e Rose Neeleman, americanos de Salt Lake City, no estado de Utah, entregaram à Bei Editora os originais de dois títulos sobre episódios que relacionam as histórias brasileira e americana. Escritos originalmente em inglês, Rubber Soldiers - The Forgotten Army that Saved World War II ("Soldados da Borracha - O Exército Esquecido que Salvou a II Guerra Mundial", em tradução livre) e Stars and Bars Beneath the Southern Cross - The Confederate Migration to Brazil ("Estrelas e Barras sob a Cruz do Sul - A Migração dos Confederados para o Brasil") serão traduzidos com o auxílio do casal, fluente em português, que já soma outros oito textos em parceria.
Gary chegou pela primeira vez ao país em 1955, para atuar como missionário da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias em Ponta Grossa (PR). Retornou aos Estados Unidos, casou-se com Rose, e então vieram ao país, estabelecendo-se em São Paulo, onde ficaram por alguns anos, a partir da década de 1960. Gary trabalhava então como correspondente da United Press International (UPI). Três dos sete filhos dos Neeleman nasceram aqui, incluindo o mais famoso deles - David Neeleman, 52 anos, fundador da Azul, a terceira maior empresa aérea nacional, com 9 mil funcionários e 885 voos diários. Um breve censo familiar evidencia os laços do casal com o Brasil: dos 34 netos, 20 têm dupla cidadania.
- A coisa mais importante na nossa adaptação foi o povo. Eu não falava uma única palavra em português quando cheguei. Para fazer compras, andava com um dicionário, apontava, e os vendedores me diziam os preços - conta Rose, 78 anos, durante entrevista concedida em Porto Alegre. - Morávamos na Avenida Paulista. Era uma delícia. Não havia muitos edifícios nem tanto engarrafamento - complementa.
Rubber Soldiers e Stars and Bars Beneath the Southern Cross devem formar uma trilogia com Trilhos na Selva - O Dia a Dia dos Trabalhadores da Ferrovia Madeira-Mamoré (2011). O livro recupera o dramático intervalo entre 1907 e 1912 para falar dos operários envolvidos na construção da chamada "ferrovia do diabo" ou "ferrovia da morte", na Amazônia. O apelido funesto se deve ao alto número de óbitos registrado à época. A motivação para o texto surgiu quando os autores tiveram acesso a fotos inéditas e a exemplares do jornal The Porto Velho Marconigram, editado por funcionários americanos ligados à construção da estrada de ferro.
Em um dos novos títulos, finalizados há pouco e ainda sem data de publicação, Gary e Rose tratam da produção de borracha nos seringais amazônicos durante a II Guerra. Um acordo, estabelecido no governo de Getúlio Vargas, previa o abastecimento dos países aliados com o produto e atraiu milhares de trabalhadores do Nordeste, com promessas jamais cumpridas, para os seringais da floresta. No outro livro já concluído, o terceiro da trilogia, com uma compilação de materiais feita ao longo de décadas, os pesquisadores se detêm na chegada de imigrantes ao interior paulista após a Guerra Civil americana (1861-1865).
- Esse livro começou há 50 anos - recorda Rose.
Gary deu início à investigação do tema ao se integrar à redação da UPI em São Paulo. Depois da também chamada Guerra de Secessão, outro nome para o conflito civil, americanos se estabeleceram no interior paulista, endereço fundamental para as pesquisas do autor.
- Recebemos um telegrama do escritório de Nova York falando sobre a passagem dos cem anos do final da guerra, no ano seguinte, 1965. Gostariam de fazer uma reportagem grande e queriam saber se havia alguém que poderia assumi-la. Lembrei de uma moça loira, de olhos azuis e sotaque da Geórgia que conheci. Ela já havia voltado aos EUA, mas tinha morado na região de Americana e Santa Bárbara dOeste (SP), e fui atrás dos parentes dela. Participei de um piquenique dos confederados. Havia Kentucky Fried Chicken, milho na espiga, e todos falavam com sotaque sulista - diverte-se o jornalista de 79 anos.
A carreira como repórter que principiava ali foi rica em experiências. Gary acompanhou os primeiros anos da ditadura militar e a construção da nova capital federal.
- Viajei com Juscelino, viajei com Carlos Lacerda, viajei com Jango, viajei com Jânio quadros. Estava em Brasília quando a cidade foi inaugurada - enumera ele, hoje cônsul honorário do Brasil em Salt Lake, onde estima que vivam quase 20 mil brasileiros.
Depois de regressar em definitivo para a terra natal, Gary e Rose incorporaram à rotina as viagens periódicas ao Brasil, em férias e a negócios. Vêm todos os anos, mais de uma vez. Um dos filhos, Mark, mora em Balneário Camboriú (SC).
- Foi um tempo muito gostoso. É difícil dizer por que voltamos aos EUA. Éramos muito felizes aqui - diz Rose.
Passado incógnito
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