Ideias simples são sedutoras. Daí é de estranhar que não se tenha propalado esta analogia até agora: Porto Alegre calhou de receber na primeira temporada de 2013 dois dos mais talentosos autores da África do Sul. Estiveram por aqui, quase ao mesmo tempo, o escritor J. M. Coetzee e o artista visual William Kentridge. Coetzee, ciceroneado pela professora Kathrin Rosenfield, fez conferência no Salão de Atos da UFRGS e lançou o livro A Infância de Jesus. Kentridge inaugurou a exposição Fortuna, na Fundação Iberê Camargo, com curadoria de Lilian Tone. A mostra encerra-se neste domingo.
Aproximar os dois, Coetzee e Kentridge, ainda que brevemente, talvez possa afinar nossa percepção sobre a obra de ambos. Os dois teriam mais em comum do que a origem. Comecemos pelo óbvio: Coetzee e Kentridge chegaram à idade adulta sob o odioso regime de segregação racial do apartheid ( 1948 - 1994). Nasceram brancos, o que não correspondia necessariamente a uma vida mansa. Primeiro, porque ser branco sob o regime de exceção, mesmo contando com as benesses reservadas à minoria no comando, não equivalia a estar a favor do Partido Nacional e de sua política racista ( o pai de Kentridge, advogado, foi um notório militante pelos direitos civis; Coetzee, ele mesmo, ganhou projeção como voz antiapartheid). Segundo, porque não apenas os negros eram marginalizados. Carregar um nome judeu, como Kentridge, incluía o risco de tomar uma surra na rua. Um nome africânder, como Coetzee, também não era garantia.
No livro Infância ( 1998), primeiro volume de sua trilogia autobiográfica, o escritor recorda o pavor escolar de ser transferido de uma classe de britânicos para uma de africânderes, garotos de pés descalços e cabeças raspadas. Sublinhe-se que, tanto na obra de Coetzee quanto na de Kentridge, o tema do Apartheid quase nunca vem em primeiro plano, situa-se antes em uma zona latente, não nomeada, como uma espécie de fantasmagoria. A evocação por vezes tende ao alegórico, mas nem por isso se faz leve.
No romance À Espera dos Bárbaros ( 1980), a sombra de um ataque inimigo, em uma cidade empoeirada de fronteira, justifica as piores vilanias. Às vezes, esse pano de fundo totalitário corre mais disperso. No recente A Infância de Jesus, a trama ( Simón quer proteger e dar uma família a David, menino de cinco anos que, como ele, não tem nenhum passado) se desenrola em uma cidade novamente fronteiriça; dessa vez, porém, os forasteiros são acolhidos quase bem demais, em meio a gentilezas que camuflam as intolerâncias de um cotidiano já sem gosto.
Mestres da autorreferência, criadores de uma obra coerente e de enganosa simplicidade Também os desenhos de Kentridge revivem os horrores do autoritarismo. Se na animação History of the Main Complaint ( 1996) dois brancos, sem hesitação nem piedade, chutam o rosto de um negro, no curta Felix in Exile ( 1994) o racismo ressurge pelo viés da indiferença e do isolamento. Talvez o mais impressionante, em Coetzee como em Kentridge, seja a noção de que a memória daqueles anos se mantém, queiramos ou não, como trauma.
As narrativas de um e outro são assombradas tanto pelas lembranças de uma realidade embrutecida quanto pelos esforços de reconciliação pós- Apartheid. Coetzee e Kentridge compartilham também a qualidade rara, própria dos grandes autores, da aparente simplicidade. Kentridge emprega o desenho a carvão e a animação mais caseira ( o stop- motion), além de um recurso que remonta aos primórdios do cinema ( o detrás- para- diante), para atingir a mais alta sofisticação. Como já notou a professora Ana Albani de Carvalho, aqui mesmo, na edição de 6 de abril do Cultura, ele nunca descamba para a banalidade da decifração.
Pede, antes, um olhar atento e uma curiosidade sincera. Suas imagens permanecem como enigmas. Quando parece que matamos a charada, acabamos voltando ao início mais uma vez. Talvez o mesmo se possa dizer de Coetzee. A clareza da escrita e sua excelência expressiva rapidamente seduzem o leitor. Só aos poucos, com leitura atenta e curiosidade sincera, se alcança o autor em sua agudeza intelectual, seu rigor analítico e até mesmo, mais raro, em seu convite a retomar sentimentos por vezes negligenciados no mundo contemporâneo, os do belo e do bom. Como em Kentridge, há sentimentos, mas não concessão sentimentalista. Antes disso, o compromisso ético e a nota irônica ( nunca cínica).
Enfim, talvez algo mais aproxime os dois autores. Coetzee e Kentridge recorrem volta e meia à autorreferência. Claramente funcionam como projeção de Coetzee os protagonistas de Desonra, Diário de um Ano Ruim, Homem Lento, A Infância de Jesus: homens velhos ou de meia- idade, cansados da vida, conduzidos a situações desoladoras, tristes, mas prontos a redescobrir a beleza do mundo. Kentridge, a seu turno, empresta sua própria imagem, em fotografia e desenho, para se representar trabalhando ou pensando, literalmente dando voltas em torno de si. Ainda nessa linha, há nos trabalhos do escritor e do artista elementos, personagens e imagens que continuamente se repetem - sempre com surpresa e algum humor. Em Homem Lento ( 2005), o personagem título depara com a protagonista de outro livro de Coetzee, Elizabeth Costello ( 2003), e chega a se perguntar se ele, o homem lento, não seria apenas um personagem secundário - um coadjuvante - em uma trama urdida por ela, Elizabeth.
Em Fortuna, há figuras que somem e reaparecem ao longo do trajeto, de uma sala para a outra, de um suporte para o outro, do desenho animado para o espaço tridimensional, e vice- versa. Claro que essa autorreferencialidade não é exclusividade deles. Uma porção de escritores e artistas visuais vem, com persistência, se dedicando a isso. O caso é que Coetzee e Kentridge sabem fazê- lo muito bem, nos convencem. São mestres.