Zero Hora - Onde o senhor nasceu e cresceu? Quem eram seus pais? Como foi sua educação?
Flávio Loureiro Chaves - Nasci em Porto Alegre, no dia 4 de fevereiro de 1944. Meu pai, que faleceu há dois anos, aos 98 anos, era um dos advogados de projeção na época na Capital. Vinha de uma família lusitana tradicional, os Loureiro Chaves. Meu avô paterno tinha sido secretário de Comércio de Borges de Medeiros. Minha mãe era filha de imigrantes italianos que tinham vindo fazer a América, os Giannetti. Era uma família modesta, na qual as mulheres tinham se dedicado a costurar para fora. Costuravam num dia para comer no dia seguinte. Minha formação foi bem dividida entre uma família tradicional, de posses, e uma família muito modesta de imigrantes. Isso permitiu que eu tivesse uma boa educação tanto do ponto de vista formal como informal.A parte de meu pai era mais culta, com uma bagagem de leitura respeitável, e o lado de minha mãe era aquela sabedoria empírica das pessoas que lutam pela subsistência.
ZH - Esses dois lados eram rigidamente limitados? Como era a convivência deles?
Loureiro Chaves - O lado de meu pai tendia a ser mais formal, e o sangue italiano da minha mãe tinha uma boa dose de autoritarismo. Os dois lados pesaram igualmente na minha formação. Meu avô paterno morava num solar na Rua dos Andradas, marcado pela austeridade e pela formalidade. Na família da minha mãe, todos os homens tinham morrido no espaço de um ano. Sobrou uma família de mulheres e crianças que moravam numa fileira de casas junto à Santa Casa de Misericórdia, numa área que desapareceu para dar lugar ao Viaduto Loureiro da Silva (no final da Avenida Salgado Filho). A casa ficava ao lado do Armador Postiga. Um de nossos divertimentos infantis era pular o muro para brincar dentro dos caixões, porque os quintais eram lindeiros (risos). Se, do lado do meu pai, havia um formalismo lusitano, o lado materno era lúdico, por ser uma família de mulheres e crianças morando na casa lindeira ao armador de caixões de defunto. Acho que esse lado me salvou, porque, se tivesse prevalecido a influência do lado paterno, teria sido uma formação muito conservadora e austera. Sou uma pessoa mais retraída e talvez até bastante conservadora do ponto de vista ideológico, mas, do ponto de vista existencial, valorizo muito o lúdico, o imaginário, a novidade. O que salva a vida de uma pessoa é o lado lúdico (risos).
ZH - Onde o senhor cursou o Ensino Fundamental?
Loureiro Chaves - Minha educação formal começou com a leitura do Tesouro da Juventude (coleção de livros juvenis), com o qual meu pai me presenteou, e eu tenho até hoje. (Aponta uma fileira de livros de capa dura numa prateleira da sala de estar.) Ele lia para mim o Tesouro da Juventude nas tardes de sábado e de domingo. Naquela época, entrava-se para a escola muito cedo, e comecei a ler com cinco, seis anos. Fui alfabetizado no Colégio Farroupilha,que funcionava no local onde hoje está o Plaza San Rafael, na Avenida Alberto Bins. Era um colégio razoável em matéria de transmissão de conhecimentos, mas péssimo do ponto de vista existencial. Quando ingressei lá, em 1950, era um ninho de ex-nazistas germanófilos, alguns oriundos da Alemanha. O colégio, inclusive, tinha sido fechado durante a guerra. Havia um bafio de nazismo ali dentro,que evidentemente só rotulei assim a posteriori. Isso se manifestava num autoritarismo excessivo, que não estabelece o padrão educacional, mas que tem a disciplina como um fim em si mesmo. Creio que isso era, nos anos 1950, uma herança da matriz nazista daquela sociedade educacional. Os professores eram muito velhos. Tive lá uma trajetória conflituada do ponto de vista disciplinar, porque nunca aceitei o tipo de autoritarismo discricionário que se exercia. Quando terminei o ginásio (equivalente à parte final do Ensino Fundamental), fui transferido para o Colégio de Aplicação, que realizava a experiência pedagógica mais avançada do Brasil. Fiz parte da segunda turma de Curso Clássico (uma das modalidades que correspondiam ao atual Ensino Médio) do Aplicação. Saí da mais absoluta ditadura educacional para a mais avançada experiência nesse terreno. Ali, tive grandes professores. Devo muito à diretora, Graciela Pacheco, à vice-diretora, Isolda Paes, e tive aula de literatura com Carlos Appel.Acho que foi ele que me inoculou o vírus da literatura (risos). Era um professor que dava listas individuais de leitura para cada aluno. Ali, a minha descoberta da literatura foi muito ampliada.
ZH - O senhor ingressou na faculdade em meio à efervescência cultural do início dos anos 1960. Como vivenciou aquele momento?
Loureiro Chaves - Entrei na Faculdade de Direito da UFRGS em janeiro de 1962. Havia um ambiente de efervescência política, também. Era o fim do governo Juscelino Kubitschek, a inauguração de Brasília e a eleição de Jânio Quadros, em 1960, que nos deixou siderados. Meus colegas e eu íamos aos comícios de Jânio e ficávamos frustrados por não poder votar. A experiência do Aplicação me levou a outros focos culturais, como o Clube de Cinema de Porto Alegre. O mandatário, por assim dizer, era P.F. Gastal, que se tornou meu guru. O momento histórico permitiu que eu conhecesse pessoas excepcionais. Gastal me levou à dona Eva Sopher, no ProArte, que tinha uma atividade musical muito intensa, ao Teatro de Equipe, onde estava Mário de Almeida. Isso durou até 1964.
ZH - É nesse mesmo período que o senhor conhece Erico Verissimo.
Loureiro Chaves - Conheci o Erico um pouco mais tarde, por volta de 1965, 1966, quando ele estava concluindo O Senhor Embaixador. Cursei Direito e Letras concomitantemente, mas não cheguei a concluir Direito. Me formei em Letras em dezembro de 1966, e houve um acaso. Também em 1966, Guilhermino César (intelectual mineiro, professor titular de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia da UFRGS) foi convidado para dar aula na Universidade de Coimbra por cinco anos. Em março de 1967, comecei a dar todas as aulas de Guilhermino como professor substituto na então Faculdade de Filosofia. Guilhermino publicou nos anos 1950 a História da Literatura no Rio Grande do Sul, que era a única existente.Meu contato com ele, de fato, ocorreu quando ele voltou. Ele me convidou para ser substituto porque eu estava me formando, e ele me considerava bom aluno. Um ano antes,eu tinha começado a lecionar no Colégio Israelita Brasileiro, uma experiência interessante, comandada por Ruy Carlos Ostermann. Eu dava aulas pela manhã na UFRGS, à tarde assumia quatro ou cinco turmas no Israelita e, à noite, três ou quatro turmas na Faculdade Porto-alegrense (Fapa). E não morria (risos). Hoje, eu morro só de pensar nisso. Quando a gente tem 20 anos,faz qualquer coisa.(Risos.)
ZH - O que motivou seu encontro com Erico?
Loureiro Chaves - Ele era o grande escritor do Rio Grande do Sul.E,como com 20 anos a gente faz qualquer coisa, eu bati à porta e disse que queria conversar com ele. Nesse momento, começou uma amizade que durou até a morte, em 1975. Ele tinha uma coisa que sempre me impressionou muito: interessava-se pelas pessoas. Ele caminhava pela manhã,trabalhava à tarde e recebia pessoas à noite. Não só o vasto círculo de amigos que ele tinha, como qualquer pessoa que batesse à porta. E acho que daí ele tirava a matéria humana dos romances. Era um homem muito afável, mas não era expansivo, falava pouco. O que ele realmente gostava de fazer era de escutar.Vi desfilar por aquela casa uma fauna humana incomparável.As pessoas telefonavam para ele de um hotel: "Estamos passando por Porto Alegre, lemos um romance seu". E ele:"Venham para cá". Havia uma curiosidade ilimitada pelo ser humano.A casa dele era uma open house. Aprendi, dessa forma, como a grandeza de um grande indivíduo como ele convivia, na mesma pessoa, com uma extrema abertura para os outros. A maior indagação da vida desse homem foi pela alteridade. Com Erico vivo, não conseguia entender aquilo, porque a minha vaidade não o permitia. Eu o via falar por horas a fio com pessoas absolutamente desconhecidas e perguntava:"Erico, como você tem espaço para isso na sua vida?".
ZH - E qual era a explicação?
Loureiro Chaves - Ele não chegou a ver meu livro, que publiquei em 1976. As realizações às quais assistiu foram a reedição de Fantoches e a organização de uma coletânea, O Contador de Histórias, comemorativa dos 40 anos de atividade dele, em 1972, com ensaios de Tristão de Athayde, Otto Maria Carpeaux,Antonio Candido,Fábio Lucas, Jorge Amado, Lygia Fagundes Telles, Jorge de Andrade, Moysés Vellinho e Guilhermino César.Pela primeira vez, a nata da crítica brasileira se reunia para citar Erico como um escritor de primeiro nível, no proscênio da literatura brasileira. Até ali, ele era considerado o autor de Olhai os Lírios do Campo. Está bem, ele tinha escrito O Tempo e o Vento, mas era considerado um autor para o grande público. Nunca tinha sido feita uma avaliação crítica da obra dele. No momento em que organizei o livro, não me dei conta do que estava acontecendo. Mas é nesse momento que a avaliação crítica do Erico dá uma virada.
ZH - Por que O Tempo e o Vento, que teve o último tomo publicado em 1962, não foi suficiente para provocar essa virada?
Loureiro Chaves - Ele demorou mais de uma década para publicar as 2 mil páginas de O Tempo e o Vento. Tinha publicado O Continente em 1949, e o terceiro volume de O Arquipélago em 1962. Durante essa década, as pessoas ficaram com O Continente na cabeça. Quando a obra se completou, 10 anos depois, aconteceram duas distorções. Em primeiro lugar, a maioria não leu O Tempo e o Vento inteiro, só leu O Continente, e não chega a ver que não se trata de uma narrativa épica, de louvor à epopeia dos guerreiros do Rio Grande do Sul, mas, ao contrário disso, a degradação dos ideais dos fundadores da Província de São Pedro na tirania getulista que vai desfilar em O Arquipélago. Ele escreve um romance histórico profundamente crítico à saga guerreira do Rio Grande, porque ela vai dar como resultado a corrupção da ditadura getulista. Não por acaso, Jorge Amado escreve Subterrâneos da Liberdade,e Graciliano Ramos,Memórias do Cárcere. Em segundo lugar, esse problema foi agravado por autores como Sérgio Buarque de Holanda, que tinha escrito uma crítica altamente positiva a O Continente. Quando sai O Retrato, ele publica uma análise devastadora, na qual diz literalmente o seguinte: "Não se pode construir Roma ubi Troia fruit (no lugar em que estava Troia)". Wilson Martins faz a mesma leitura. Mas a obra não caiu. O projeto de O Tempo e o Vento é a crônica do Rio Grande, que começa no século 18 como epopeia e se degrada na corrupção política do Brasil. Trata-se de uma obra que sempre foi mal avaliada, ou por acharem que era uma epopeia (e não o era), ou por considerarem que a epopeia da primeira parte não se sustentou na segunda e na terceira.
ZH - Depois de O Tempo e o Vento, Erico escreve três romances de alta voltagem política: O Senhor Embaixador, O Prisioneiro e Incidente em Antares. Como era Erico Verissimo nesse momento?
Loureiro Chaves - Se eu fosse resumir em uma palavra o que Erico me ensinou, eu diria: coragem. Ele era de uma coragem absoluta, na literatura e fora dela. Quando se tratou de protestar contra a censura, duas vozes se ergueram: a de Jorge Amado
e a dele. Era o governo Médici. Se formos a 1971, quando foi publicado Incidente em Antares, a editora (Globo) produziu uma tiragem de apenas mil exemplares, com medo de que a edição fosse apreendida. Erico teve uma ideia genial: a primeira edição de Incidente em Antares circula com uma cinta, combinada a outdoors nas ruas, com os dizeres:"Num país totalitário, este livro seria proibido"(risos). Acontece que o país era totalitário, mas, a partir daí, o livro não foi proibido. São coisas que o tempo vai soterrando, mas, em 1971, quantos escritores protestaram? Quantos Incidente em Antares apareceram? Todos preferiam dizer que tinham livros guardados na gaveta, mas não apareceu nenhum. É o momento em que a UFRGS atribui a Erico o título de doutor honoris causa, e ele rejeita a homenagem com o argumento de que não pode aceitá-la de uma universidade sob ocupação militar e que cassa professores e alunos. Não esqueçamos que, nesse momento, quem dizia isso era mutilado em câmaras de tortura. Erico saiu de casa e foi ao QG do III Exército exigir a libertação de Reynaldo Moura (escritor), que tinha acabado de ser preso. Moura era idoso e angelical, mais ainda do que Mario Quintana. No dia seguinte, ele foi libertado. Erico entrou no III Exército, e o comandante, general Justino Alves Bastos, reuniu a oficialidade no salão nobre para apresentá-la ao"maior escritor do Rio Grande do Sul"(risos).