Há boemias e boemias.
Há aglomerados de gente que se formam em torno de certos bares ou boates, em certas épocas, cuja natureza efêmera faz com que seu significado, para além de seu tempo, seja nenhum. E há os pontos de encontro que, de tão marcantes para a identidade de uma geração, ou de uma cidade, parecem diminuídos ao serem chamados simplesmente de... boemia.
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Não era um ponto boêmio! Não diga isso", brada o poeta Eduardo San Martin, nas primeiras páginas de Esquina Maldita, livro sobre a - desculpe-me, San Martin - boemia que tomou conta do encontro da Avenida Osvaldo Aranha com a Rua Sarmento Leite nos anos 1960 e 70. Assinado pelo jornalista Paulo César Teixeira, o Foguinho, ilustrado com imagens da fotógrafa Tânia Meinerz e editado pela Libretos da designer Clô Barcellos, o volume chancela o discurso do poeta: com base em entrevistas com quase 80 ex-frequentadores, mapeia um reduto de efervescência política e cultural habitado por personagens irresistíveis que foram artífices das principais mudanças comportamentais verificadas na Porto Alegre das últimas décadas.
> Bares refletiam as mudanças de comportamento nos anos 1960 e 70
Esquina Maldita, cujo título alude à forma como o local era conhecido à época, terá sessão de autógrafos nesta quarta (7/11) na Feira do Livro (às 18h) e, na quinta (8/11), uma confraternização no Bar do Marinho (a partir das 19h30min), localizado na Sarmento, 964. São duas chances para ver ou apenas relembrar algumas das figuras lendárias que desfilam pelas páginas do livro, do garçom Isake ao dançarino Nega Lu, passando pelo português Mário Fernandes, dono do Marius, o único entre os cinco mais importantes botequins da região (os outros eram o Estudantil, o Acapulco, o Copa 70 e o Alaska) a se manter ativo até hoje.
- Para ser franco - diz Mário, 90 anos, à mesa do restaurante que leva o seu nome -, o que houve foi que eles não souberam se manter. Faliram - completa, ressaltando que o Marius "era o bar dos professores da UFRGS, e não apenas dos alunos", e que lá, "ao contrário dos outros, nunca foi permitido fumar baseado nem dançar em cima das mesas como fazia aquela Nega Lu".
Com o aumento do movimento na Osvaldo e nos túneis da Conceição, hoje é bem mais difícil chegar à esquina a pé. Mas, no início da ditadura militar - antes que cursos como o de Filosofia fossem mandados para perto de Viamão -, aquele era o ponto de encontro dos estudantes da UFRGS. O ponto de suas confabulações contraventoras. E, consequentemente, berço de projetos culturais que marcariam a cidade, além de palco para as principais ousadias comportamentais à época - uma "república libertária etílica", conforme o jornalista Emílio Chagas.
- O livro é uma colcha de retalhos na qual os depoimentos de cada uma das pessoas que vivenciaram aquilo têm vida própria - explica o autor. - Em nenhum momento tive a preocupação de procurar uma verdadeira esquina maldita. Os relatos misturam as experiências individuais com o contexto social, político e cultural da época.
Com passagens pela IstoÉ e pela Folha de S.Paulo, Foguinho transita com desenvoltura por todas as áreas do jornalismo. Entre elas, por óbvio, a boemia. Ou, para seguir a linha de San Martin, a história contemporânea forjada nas ruas das cidades - "Tão importante para a identidade de um lugar quanto àquela história dos mitos rurais que costuma ser festejada por aqui", comenta.
- No livro sobre o Professor Darcy (Darcy Alves: A Vida nas Cordas do Violão, de 2010), parceiro de noite de Lupicínio Rodrigues, falei de uma boemia mais tradicional. O núcleo agora é o da transgressão, o da troca de ideias para mudar o mundo - comenta.
O que faz do novo trabalho uma preciosidade da história urbana da Capital é a maneira respeitosa com a qual o autor olha a anarquia daquele contexto - como se incorporasse os mesmos códigos de ética do lugar. Respeita a sua história oral, ciente de que o patrimônio imaterial se constrói também sobre o mito, dando voz a lembranças esparsas e a certos exageros que fazem parte da maneira como se olha, hoje, para o que se vivenciou ontem - sobretudo quando essa vivência é tão intensa.
Foguinho explica:
- A boemia carece de rigor científico
Especialmente determinadas boemias, completaria Eduardo San Martin.
Esquina maldita
Livro reúne histórias sobre reduto da boemia porto-alegrense
Paulo César Teixeira conta a movimentação no encontro da Avenida Osvaldo Aranha com a Rua Sarmento Leite nos anos 1960 e 70
Daniel Feix
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