Millôr não costumava atender ao telefone. Quando o aparelho tocava, deixava a secretária eletrônica trabalhar. "Fale ou faxe", indicava a gravação. Se o interlocutor fosse de algum modo convincente conversando com a máquina, ele dava uma chance e tirava o fone do gancho. Foi assim que aceitou me receber para a entrevista-experiência mais marcante da minha vida de jornalista.
Suas respostas não eram exatamente uma aula de erudição, como as de outros intelectuais de mesmo porte - há poucos em seu tempo, diga-se. Millôr sempre foi genial nas tiradas rápidas, curtas. Era um mestre da síntese. À Drummond, resumia um país irresumível como o Brasil ou sentimentos irredutíveis inerentes à condição humana em uma única frase, geralmente acessível a todos os leitores.
Chegou a perguntar, durante as duas horas de bate-papo, se eu não preferiria respostas longas. Percebendo que eu o testava respondendo "sim, prefiro", afirmou, rindo, que não esquecesse que além de entrevistador eu era também um fã. Millôr parecia não se irritar. Para que se preocupar se havia sempre uma piada - sagaz, certeira - com a qual conseguia driblar qualquer inconveniente. Não foi de outro modo que ele e a turma do Pasquim conseguiram duelar com a censura militar à imprensa. À Barão de Itararé, fazia humor com uma contundência política destruidora.
Foi paciente até mesmo ao recordar a escola da revista Cruzeiro, uma das experiências jornalísticas mais marcantes do século 20, exercício que era incitado a fazer a todo instante há pelo menos cinco décadas. Mas gostou mesmo foi de ter falado sobre assuntos mundanos como a improvável disposição de sua faxineira, que tomava três ônibus por dia para chegar ao trabalho, a diferença de tom entre os gritos de "cuco" que saíam dos quatro relógios que havia nas suas paredes, algumas peças raras que ele recém incorporara à sua coleção de computadores e objetos de informática, a beleza da atriz Thandie Newton no filme Assédio (1998), de Bernardo Bertolucci, que passava na televisão enquanto eu insistia em tentar direcionar nossa conversa.
Negou-se a olhar para trás para eleger textos preferidos ou momentos mais produtivos, mas mencionou a peça Flávia, Cabeça, Tronco e Membros (1963) como quem falava de sua obra-prima incompreendida - "Ela nunca foi de fato entendida pelos encenadores", disse. Quando mencionei que o grande tema de seu trabalho era a liberdade, foi à estante e puxou seus próprios escritos. "Só existe um modo de ser livre: ser o opressor", leu, citando a orelha que assinou para uma edição nacional do discurso Areopagítica (1644), de John Milton.
Eram milhares os livros que o envolviam. "Preciso tê-los todos à disposição para trabalhar", explicou. "Sacanagem requer erudição".
Dezenas deles estavam espalhados, alguns abertos, como se recém tivessem sido consultados. Na escrivaninha, enorme, capaz de acomodar folhas de todos os tamanhos, lápis, canetas e pincéis de todos os tipos, ele se posicionava como um gigante em meio ao caos - um elefante do conhecimento, para citar a figura metafórica do título da peça que ele publicou em 1960.
Não aparentou cansaço. Mas avisou que precisaria dar conta de outras tarefas assim que a sinfonia das horas cheias anunciou que já eram 17h. Estávamos em sua cobertura-escritório, a uma quadra da praia de Ipanema, no Rio - a cobertura em que ele morava fica à beira-mar. Isso em fevereiro de 2004. Em abril, recebi um e-mail em que Millôr elogiava a entrevista. O mito do gênio distante caía, magnífica e definitivamente.