Emicida volta a Porto Alegre neste sábado (6) com a turnê AmarElo – A Gira Final. Ele sobe ao palco do Pepsi On Stage, com abertura do DJ Nyack e do rapper Zudizilla, em evento que começa às 20h30min (veja detalhes sobre ingressos ao final da entrevista). O cantor e compositor traz à capital gaúcha a despedida da turnê de seu álbum lançado em 2019, que se tornou um marco na carreira de Leandro Roque da Silva, nome de batismo do músico.
Em entrevista a GZH, o rapper falou sobre o show, Porto Alegre, a era AmarElo, a possibilidade de um disco de samba e a pausa na carreira. Tudo começou com uma dúvida de tratamento, que se revelou existencial.
Para começar, você prefere que eu chame de Leandro ou Emicida?
Meu mano, nem eu sei te dizer mais. Estou fazendo terapia e fico tipo: "Será que esse Emicida não é um personagem? Não deveria ser chamado só de Leandro?" (risos). Tá f***, estou exatamente nesse momento da terapia: "Isso é uma persona do palco ou é você na sua vida?"
As coisas se misturam.
É mano, se mistura demais e você acaba se transformando em um personagem fora do palco. O que de maneira nenhuma é saudável. Sobretudo para quem convive (risos). Velho, o que você se sentir à vontade, fica tranquilo, não me ofendo com nenhum. Amo os dois. Eles só ficam brigando dentro da minha cabeça (risos).
(A reportagem optou pelo nome de batismo) Leandro, para começar, o que diferencia o show da turnê A Gira Final para a apresentação que você trouxe para Porto Alegre no ano passado? De que maneira esse show cresceu?
Na experiência que levamos no ano passado, tínhamos uma banda menor. Era um modelo de show que não era o mais amplo que costumamos fazer. Em São Paulo, por exemplo, a gente consegue realizar com 100% daquilo que imaginamos. Às vezes, você vai viajar para alguns lugares e tem algumas limitações, por questões técnicas ou de orçamento, e se faz adaptações. Desta vez, estamos indo com estrutura completa para Porto Alegre e com aumento da setlist. É um show um pouco maior, com a releitura de algumas coisas de uma maneira um pouco mais intensa e visceral. Não que antes não fosse, mas acho que agora a gente se dedicou. Pegou algumas semanas e ficou "girando lâmpada" dentro da sala de ensaio para exprimir essa sensação apoteótica de gran finale. Acho que fomos muito felizes no resultado a que a gente chegou. O que fizemos ano passado no Araújo Vianna foi muito legal, um espetáculo emocionante. Agora temos a oportunidade de levar naipe de metais. Em 2023, eu estava sozinho com uma flautinha, humilde (risos). É um show que está arrepiante. Fizemos Belo Horizonte (shows em 8 e 9 de março), e você fica sempre com o frio na barriga no momento de uma estreia, mas foi emocionante do começo ao fim. Porto Alegre será parecido, sobretudo porque temos uma outra relação. Eu lancei Triunfo (single de 2008) em Porto Alegre. Tenho uma relação afetiva de ser sempre muito bem recebido, de ter um público ávido pela minha música. Fico ansioso sobre como será que a cidade vai receber essa repaginação do espetáculo.
Pelo que vi na setlist em Belo Horizonte, há um momento em que você referencia Pixinguinha e Cartola. Também há uma recitação do poema Súplica, de Noémia de Sousa. Que papéis cumprem esses tributos?
Estou correndo atrás de um Lupicínio Rodrigues para Porto Alegre, tá? (risos). A música contemporânea do Brasil não é filha de chocadeira. Tem pai e mãe. Acho que, às vezes, iludido pelo discurso de "fulano tem milhões ou bilhões de views e likes", a gente esquece de refletir sobre o caminho que nos trouxe até aqui. Por que achamos que os estadunidenses fazem coisas grandiosas? Porque há uma continuidade, uma base de onde as coisas partiram. Temos que referenciar esses artistas, tanto Pixinguinha quanto Cartola, ou a Noémia, que é uma poetisa moçambicana, mas que tem um sentimento que atravessa a gente enquanto brasileiro. O que eu faço é tentar apresentar à plateia os ingredientes que compõem um raciocínio que vai culminar num Emicida. Que vai tornar possível a ousadia desse tipo de personagem que faz parte da nossa cultura. Acaba sendo um momento bonito: quem é mais velho se emociona pelo valor afetivo; quem é mais novo acaba sendo apresentado a uma nova referência. Às vezes é até engraçado, a molecada acha que o Cartola está vivo (risos).
Estou fazendo terapia e fico tipo: "Será que esse Emicida não é um personagem? Não deveria ser chamado só de Leandro?
EMICIDA
Sério?
Tem uma coisa que eu faço, que creio ser a característica mais bacana do tipo de rap que eu faço, que é o seguinte: a gente era um monte de nerd, que ficava trocando referência. Fazemos isso até hoje. Rashid lê um livro e fala: "Mano, você tem que ler sobre um japonês que escreve sobre as sombras". Temos um grupo de estudo, mesmo. A gente se encontrava e era delicioso falar, por exemplo: "William, você conhece Roberto Ribeiro? Sabe quem é o compositor Nelson Rufino?", e você vê o olho da pessoa acendendo e pensando: "C*****, isso é lindo e é nosso!", saca?. De alguma maneira, o que tento fazer é levar isso para o show, que tem essa atmosfera também. Como a gente pode esquecer de Carinhoso? Por que isso não faz parte da nossa rotina de maneira mais frequente?
Passados quase cinco anos desde o lançamento do álbum AmarElo, indo agora para A Gira Final, hoje que balanço você pode fazer dessa fase?
Minha relação com o público foi para outro nível. Público cresceu de uma outra maneira. Se em 2019 parecia que a gente estava no meio de uma batalha para solidificar uma trajetória, parece que hoje temos uma plateia grande que está com uma capacidade maior de compreender o que é o meu projeto artístico. Isso faz com que a gente esteja mais junto.
Você sente que cresceu artisticamente nessa era?
Tenho estudado muito, mano, do ponto de vista técnico. No começo da minha vida, infância e adolescência, não tive a oportunidade de me dedicar a um instrumento como gostaria. Hoje, quando vamos montar os arranjos, as bases e os shows, essa é uma lacuna que sinto. Tenho utilizado esse tempo para estudar a parte técnica, porque sei que vai enriquecer muito o que já faço. A minha música parte da palavra. E eu tenho uma gratidão muito grande à plateia, porque se a turnê está durando todo esse tempo é porque gostariam de ver esse espetáculo novamente. Graças a esse tempo de fazer esse espetáculo que tenho tido a oportunidade de usar os shows para promover um experimento social, de estudar essa forma de música, que no documentário (Emicida: Amarelo — É Tudo pra Ontem, de 2020, disponível na Netflix) chamei de neosamba. Considero um trabalho de pesquisa, pelo qual você pode entender o que pode ser o próximo passo. Principalmente em um momento difícil, em que as pessoas não têm dado tanta atenção às histórias como eu. Romanticamente falando, gostaria que elas dessem.
A gente é tudo apaixonado por café colonial. À medida que vamos descendo (o Rio Grande do Sul), paramos em todos (risos)
EMICIDA
AmarElo é um trabalho que se notabilizou por trazer uma mensagem de amor como arma agregadora. E o disco surgiu num momento de tensões políticas, de raiva. Logo em seguida, veio a pandemia e também trouxe desespero. Que papel sente que AmarElo cumpriu nesse contexto?
Acho que foi um grande oásis para as pessoas que estavam atravessando situações muito difíceis, o que era minha ambição, mas senti que não foi bem compreendido em um primeiro momento. Ao longo do tempo, foram dando outras oportunidades para o disco e começaram a entrar em camadas que não tinham percebido na primeira audição. E quando a gente retorna para a turnê, temos a oportunidade de ver o show se tornar uma espécie de culto.
Estive em um dos shows no Araújo Vianna, em Porto Alegre, no ano passado. Realmente, remete a um culto. Uma forte catarse coletiva.
É uma coisa de transcendência espiritual, mas talvez "culto" seja a palavra que a gente usa para descrever esse tipo de congregação. Isso é a música em seu estado pleno. Música é um diálogo, da voz com instrumento ou do palco com a plateia. Acho que a gente conseguiu intensificar a música que a gente faz de uma maneira tão mágica que estabelecemos o diálogo nesse lugar de congregação.
Em sua vinda a Porto Alegre no ano passado, houve uma repercussão por aqui de seu almoço no restaurante Tudo pelo Social, conhecido por suas generosas a la minutas.
(Interrompe, rindo) Megalomaníacos!
E, depois, deu um pulo na Sorveteria Joia. Como são suas experiências na cidade?
Mano, não só Porto Alegre, mas nas vezes em que fomos tocar em cidades do interior do Rio Grande do Sul, a gente é tudo apaixonado por café colonial. À medida que vamos descendo, paramos em todos (risos). Acho que na primeira vez em que fui a Porto Alegre, fui levado ao Tudo pelo Social. Por ter essa memória afetiva tão gostosa, sempre que visito a cidade e tenho tempo, almoço por lá. Só que me lasquei, porque almocei e postei. Agora quando vou, as pessoas já se preparam e vão para lá antes (risos). Daí agora estou enrolado, vamos ver o que vou fazer no sábado. Gosto muito, porque, cada vez que você retorna para a cidade, você vai fazendo amigos. Assim como tenho o Rafuagi e, agora, a Cristal. E eles vão me mostrando coisas. Porto Alegre tem coisas muito legais, lojas de discos, uma rapaziada dos quadrinhos. Há muita troca de ideia e referências. Isso me faz ter uma paixão muito grande pela cidade, sempre volto com muita coisa na cabeça.
Você mencionou antes que a música Triunfo estreou por aqui. Como foi?
Nunca tinha tocado Triunfo em nenhum outro lugar. Estávamos testando a música. O lançamento foi em Porto Alegre. Eu e o Kamau fomos tocar aí. Triunfo não tinha introdução, e a gente precisava de uma introdução para ter uma contagem. Arrumamos um disco de vinil, se não me engano foi até na Cidade Baixa, chamado Bang Bang à Italiana, com trilhas sonoras de filmes de faroeste. Pegamos uma faixa aleatória, que tinha uma guitarra e uns metais parecidos (começa a emitir sons da introdução). Fizemos a introdução no improviso total com esse disco, a única vez que fizemos isso. Porto Alegre tem uma relação muito bacana com aquilo que a gente chamava de rap underground naquela época. Era abraçado por um público mais restrito, pois era uma coisa mais subterrânea, mas sempre foram apresentações muito mágicas, de ver as pessoas ávidas por aquele tipo de música. Essa comunidade foi crescendo até onde chegou hoje.
(Gravar um disco de samba) é uma coisa que pode acontecer, pois o samba é uma influência muito grande na música que eu faço
EMICIDA
Falando agora sobre o podcast Sambas Contados, que foi lançado no dia 11 de março: o que motivou você para realizar esse projeto?
Inicialmente, foi uma sugestão do Evandro Fióti junto à Globo. Eles, conversando ali, chegaram à conclusão de que seria legal um podcast contando a história do samba. Contar essa história é um projeto muito amplo. Tem origens muito variadas e muitas verdades. Eu gostaria de passear pelo samba, mas com uma perspectiva muito específica, de jogar luz em algumas coisas que acho valiosas. Acho que fomos muito felizes no produto final, espero que a Globoplay renove por duas, três ou 10 temporadas. O samba é um elemento muito rico, mas, se você for observar, a gente só ficou no Rio e São Paulo.
Há um Brasil inteiro de samba.
Exato, a gente pode desmembrar de tantas maneiras. Desde o Rio Grande do Sul, mergulhar no que é a (Banda) Saldanha, até ir para Manaus (AM) ou Belém (PA). Tem muita coisa para ser explorada, está tudo na minha cabeça. Como diria Wilson das Neves (compositor, cantor e baterista): "Bom gosto eu tenho, só falta quem me financiem" (risos).
Tendo como ponto de partida toda a sua pesquisa e o entusiasmo, você já pensou em gravar um álbum inteiramente de samba?
Eu considero minha música uma forma de samba. Mas meu parceiro Julio Fejuca vive falando isso daí: “Vamos gravar umas versões samba-samba, só samba!". "Vai fazer um disco de samba!". Temos uns rascunhos dessa natureza, talvez possa acontecer em algum momento. Por exemplo, a Ludmilla trouxe o pagode para o espetáculo dela, Numanice, e fez uma coisa maravilhosa. Estou querendo fazer uma coisa dessa natureza. Toda vez que a gente monta um espetáculo, Fejuca me cobra: "Vamos fazer isso aí, pega uma sessão (de estúdio) e sai facinho". Só que a gente fala, fala, fala e não conclui. Mas é uma coisa que pode acontecer, pois o samba é uma influência muito grande na música que eu faço, que nem consigo ver uma linha que divida as duas coisas.
Assim como outras canções suas, seu último single, Acabou, Mas Tem…, tem uma sonoridade voltada para o samba. Aliás, há também uma letra delicada. Como foi a concepção dessa faixa?
É uma música que escrevi no meio da pandemia. Perdi algumas pessoas, como todos nós, e um amigo muito próximo que foi o Bruno Pompeu. Foi o primeiro cara a acreditar que eu tinha, de fato, um talento. Isso mexeu muito comigo, estava naquele momento de reclusão, sem poder participar dos ritos funerários. Fiquei com uma espécie de fantasma me seguindo. Não conseguia concluir que o Bruno tinha falecido. Várias vezes eu acordava, pegava o telefone para dar um salve nele. Ficava relendo as mensagens, ouvindo os áudios que ele tinha mandado. Foi bem difícil. Isso foi 2020, e eu tive que ir elaborando isso com as ferramentas emocionais que eu tinha. Isso acabou se consolidando na ideia de que eu deveria fazer terapia. Essa perda mexeu com muita coisa em mim. Acabei parando de compor. Fiquei num bloqueio. Me pareceu, a certa altura, que as coisas tinham perdido o sentido. Vou te falar que ainda estou nessa atmosfera. É louco quando você está com uma pessoa desde o começo e de repente a perde. A gente vivia trocando, ele vinha aqui em casa, conversávamos sobre música e espiritualidade. Chegou o momento em que eu não tinha mais o meu amigo para bater essas figurinhas que a gente batia. Isso acabou desmontando tudo na minha cabeça. Quis escrever essa música porque estava vendo todo mundo atravessar uma angústia parecida. Essa coisa de "Não sinto que meus amigos tiveram fim, não/ Sinto que eles se mudou pra dentro de mim" da letra está muito ligada a essa travessia. É uma travessia de um período obscuro que ainda estou saindo. Quando falo com amor muito grande sobre a era do AmarElo é porque, nesse processo terapêutico, a plateia foi isso para mim. Encontrar aquelas pessoas depois de todo esse período, atravessando aquela época de tantas mortes, fez com que eu visse um solzinho de esperança de novo, que eu tinha perdido a capacidade de visualizar, sacou?
Essa perda (do amigo Bruno Pompeu) mexeu com muita coisa em mim. Acabei parando de compor. Fiquei num bloqueio
EMICIDA
Terminada essa Gira Final do AmarElo, no que você gostaria de focar?
A minha pretensão é dar um tempo. Eu tô há anos fazendo isso todo final de semana. Quando a gente chegou, o rap estava em um lugar. Tenho a sensação de dever cumprido. Não que isso seja um ponto final. Mas preciso dar uma pausinha para colocar minha cabeça no lugar, em um tempo meio indefinido. Todo mundo fica me perguntando: "E o próximo?". Acho que a gente entrou num vórtice doentio de produção, em que você tem que emendar um no outro. Só que para a matéria-prima que a gente faz, a gente precisa sentir coisas para expandir as perspectivas. Vivi de uma maneira muito louca, por responsabilidade minha, essa coisa meio workaholic. Tipo, meu nome é trabalho, sobrenome hora extra. Isso é uma coisa maluca e doentia, que não faz mais sentido na minha vida. Bussunda, do Casseta & Planeta, tinha uma frase genial. Quando as pessoas diziam "muito f*** seu trabalho", ele respondia: "É porque você não viu minhas férias" (risos).
Emicida em "AmarElo – A Gira Final"
- Neste sábado (6), a partir das 20h30min, no Pepsi On Stage (Av. Severo Dullius, 1.995), em Porto Alegre.
- Ingressos a R$ 200 (pista), R$ 240 (pista premium) e R$ 250 (mezanino), via ticketmaster.com.br, com taxas.
- Desconto de 50% para sócios do Clube do Assinante e até três acompanhantes.