Há um contraponto em LaVaca, primeiro álbum autoral da compositora, violinista, pesquisadora e escritora Clarissa Ferreira. O disco, que chega às plataformas digitais nesta sexta-feira (5) — com uma versão visual no YouTube —, propõe uma perspectiva ecofeminista e contemporânea à música regional gaúcha. É um trabalho que, sobretudo, contesta o que se convencionou enaltecer na cultura do Estado, trazendo a mulher para o primeiro plano.
Os shows de lançamento de LaVaca serão nesta quinta (4) e na sexta (5), às 19h, no Teatro Oficina Olga Reverbel do Multipalco Eva Sopher (veja detalhes sobre ingressos ao final do texto), em Porto Alegre. No palco, Clarissa estará acompanhada de Ana Matielo (violão e voz), dos violinos de Miriã Farias e Bibiana Turchiello, Luyra Dutra (violoncelo), Tamiris Duarte (contrabaixo elétrico e voz), Lucas Ramos e Bruno Coelho — ambos na percussão. Também haverá participações especiais de Loma Pereira, Nina Fola, Emily Borghetti, Renato Muller, Gabriel Romano e Guilherme Ceron.
Um livro-encarte do álbum também será lançado nas apresentações. A publicação, que custa R$ 60 e pode ser adquirida pelo site clarissaferreira.com, traz letras, cifras e textos.
Além de músicas de LaVaca, as apresentações trarão no repertório singles anteriores de Clarissa, como Manifesto Líquido e Satélites, que ajudaram a desenvolver a narrativa do álbum. Ela destaca que o show serve como um ritual de passagem da construção desse trabalho.
Realizado de maneira independente via financiamento coletivo, LaVaca foi gravado e mixado por Wagner Lagemann no estúdio Pedra Redonda e no Estúdio Mochila por Lucas Ramos, entre 2021 e 2023. O trabalho teve produção da própria Clarissa, além de Ramos e Fabricio Gambogi. Já a masterização foi feita por Guilherme Ceron.
LaVaca se conecta à pesquisa de Clarissa, que é etnomusicóloga, e ao livro Gauchismo Líquido: Reflexões Contemporâneas sobre a Cultura do Rio Grande do Sul, lançado em 2022. O conceito do álbum também foi influenciado pelo livro Mugido, de Marília Floôr Kosby. Conforme a musicista, a ideia era fazer referência à deusa egípcia Hathor, um corpo de mulher com cabeça de vaca, contrapondo a imagem do centauro presente na cultura gaúcha — cavalo e homem.
— Foi o mote para pensar essa cultura tão baseada no universo agropastoril. Muitas vezes, as vacas não ficam em evidência nessas narrativas, e são elas que dão todo sustento econômico para essa cultura. Trago isso fazendo um link com a forma como as mulheres são referidas às vacas de forma pejorativa — explica Clarissa. — Como o patriarcado constrói essas fronteiras e relega as fêmeas a esse espaço de subalternidade, tanto vacas quanto humanas.
A faixa que abre o disco é A Vaca, uma poesia de Mario Quintana que foi musicada. Após se apaixonar pelos versos do autor, Clarissa também se questionou: "Se a gente fosse ver a pampa pela ótica das vacas, que pampa seria descrita?". Estava ali um mote do disco.
A Vaca já é um cartão de visita para a proposta de Clarissa de hibridizar estilos, trazendo um equilíbrio entre o pop e os ritmos regionais: começa com samba, que se transforma em milonga e segue com beat eletrônico. No álbum, ela procurou representar ritmos brasileiros e sul-americanos, passando por milonga, samba, candombe e chacarera, trazendo-os para a contemporaneidade.
Outras perspectivas
Na última sexta-feira (29), saiu Pampa, single de LaVaca com parceria de Vitor Ramil — aliás, o álbum conta com participações de nomes como Ana Prada, Rhaissa Bittar, Nina Wirtti e Loma Pereira. A faixa fala sobre o bioma, trazendo urgências como a ameaça das mineradoras aos rios do Estado e os danos causados pelos agrotóxicos e pelas monoculturas. A questão ambiental também aparece em Flor Extinta, que reflete sobre o fim da pampa.
— A pampa recebe um entendimento equivocado das pessoas, que acham que, por não ser uma área de floresta, não deve ser resguardada — frisa Clarissa. — Espécies de todos os tipos vêm sofrendo com essa degradação da pampa por conta da monocultura e das áreas de pastagens. O uso de agrotóxicos, ameaça de mineradoras aos rios... Tudo isso virou temática no sentido de alerta. A música também pode servir de ferramenta para falar sobre essas coisas.
As estruturas patriarcais são questionadas em faixas como Churrascos ("Que suem as lindas na frente da churrasqueira/ E que piquem eles as folhas verdes"), poema de Angélica Freitas que Clarissa musicou. Tiranas, adaptada de um texto de Maria Gabriela Saldanha, traz um olhar empático e de sororidade para todas as mulheres que se posicionam mas são demonizadas. Entre outras faixas, há também Flor de Pedra ("Já nasci no contratempo da costela do Adão/ Não bradaram liberdade, fui escrava da opressão"), escrita por Su Paz.
Clarissa aponta que LaVaca é um projeto pensado para trazer uma outra perspectiva para a música regional gaúcha. Como uma contestação ao que se estabeleceu no imaginário do Estado. Também é uma visão sua sobre como seria a pampa cantada pelas mulheres.
— Outras mulheres vão cantar de outra forma, o que enriquece nossa cultura. Que as pessoas saibam que existem outras perspectivas dessa cultura — pontua.
Clarissa Ferreira — LaVaca
- Shows de lançamento nesta quinta (4) e sexta-feira (5), às 19h, no Teatro Oficina Olga Reverbel no Multipalco Eva Spher (Praça Mal. Deodoro, s/nº), em Porto Alegre. Ingressos a R$40 pelo site do teatro.
- O disco estará disponível nas plataformas digitais a partir desta sexta-feira.