Por Everton Cardoso*
"O autor tentou pintar um recorte da vida. Ele tem por máxima que o artista é um homem, e que é para homens que ele deve escrever. Foi inspirado pela verdade." No prólogo cantando pelo barítono Daniel Germano para abrir a apresentação da ópera I Pagliacci, neste sábado (18), há uma síntese do que se veria naquela noite no Theatro São Pedro, em Porto Alegre. A composição do italiano Ruggero Leoncavallo é uma representante do movimento literário e operístico italiano conhecido como verismo. Surgido na segunda metade do século 19, aproxima-se bastante das correntes realistas, buscando trazer na arte, a partir de uma influência do pensamento científico da época, a realidade em toda a sua crueza. O que se vê no palco, portanto, são personagens e cenas cotidianas.
No caso da obra que a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa) e a Companhia de Ópera do Rio Grande do Sul (Cors) apresentam em três récitas no Theatro São Pedro — as demais serão neste domingo (18), às 18h, e na terça (20), às 20h, ambas com ingressos esgotados —, o drama se desenrola a partir da vida de uma trupe de palhaços. Quando o grupo chega a uma cidade do interior, uma história de ciúme e violência: Canio, dono da companhia, está enciumado por causa de Nedda, que por sua vez planeja fugir com Silvio, por quem está apaixonada. A trama toda se processa a partir da denúncia de Tonio, que se vinga depois de ser rejeitado por ela. Se no primeiro ato, em cenas da vida real, o homem traído ameaça sua companheira, na segunda parte é no teatro e a partir dos personagens da commedia dell'arte que tudo se processa. Ao encenarem a traição do Pierrô pela Colombina, Canio é tomado pela fúria e mata Nedda em pleno palco para forçá-la a dizer o nome de seu amor — este depois também assassinado.
O destaque da proposta cênica de Flávio Leite está, sem dúvida, no final da montagem. O que se vê nos palcos, em geral, é o palhaço Canio chorando com a mulher vítima de sua fúria nos braços — tal como na célebre montagem dirigida por Franco Zeffirelli para a televisão italiana em 1982, estrelada por Plácido Domingo. No momento que vivemos, porém, essa leitura já parece anacrônica e não cabe mais. Acertada, nesse sentido, é a versão porto-alegrense: as integrantes do coro que interpretam o público do espetáculo de comédia cercam o algoz e, na sequência, uma policial entra e o leva algemado. A encenação, assim, nos provoca: ver os chamados crimes passionais como feminicídios e responsabilizar e punir agressores é fundamental para enfrentarmos uma realidade ainda frequente e dura para as mulheres.
A performance do elenco é de ótima qualidade. O destaque, na noite de sábado, foi a cena protagonizada por Lazlo Bonilla ao interpretar a conhecida ária de Canio, Vesti la Giubba. Foi um brilhante encerramento para um primeiro ato no qual o tenor foi se soltando aos poucos e mostrando sua potência vocal. Também a soprano Eiko Senda, no papel de Nedda, apresentou, como de costume, seu canto preciso e comovente. Daniel Germano deu vida a um Tonio bastante interessante e se apresentou bem, assim como os demais cantores. A Ospa, sob a regência de Evandro Matté, e o coro sinfônico fizeram igualmente boas apresentações.
O cenário de Rodrigo Shalako é belíssimo e dá conta de criar uma ambiência adequada para a obra. No primeiro ato, o fundo é composto por uma grande trama de tiras de retalhos amarrada de forma irregular e sobreposta a uma cortina iluminada. Assim como nos figurinos, predominam os tons terrosos e as cores neutras, dando um ar melancólico e dramático àquela vida real que ali se apresenta. Após o intervalo, já no palco da comédia, o fundo de cena é formado por retalhos de estampas e formas diversas, mais uma vez num belo jogo com a iluminação. O colorido completa a paleta presente nos figurinos dos palhaços, criando uma composição perfeita para a estética circense. Completam as cenas estruturas de ferro que ora são carros puxados por bicicletas, ora formam arquibancadas e outras estruturas.
Fundamental e acertada é a colaboração do Grupo Tholl. A trupe de Pelotas que se tornou muito conhecida por espetáculos como Imagem e Sonho não só integra as cenas como também contribui com figurinos e outros elementos. Belíssima e na medida é a apresentação de acrobacias na abertura do segundo ato, trazendo variedade à montagem, mas sem perder de vista o fio condutor do enredo. Transporta-nos, assim, para o universo do circo, contextualizando o que vem depois e marcando a mudança da narrativa da vida real para aquela do teatro — que, depois, acabam por se misturar. Merece menção, ainda, a maquiagem feita por Gonzalo Lamego — artista, cantor lírico e drag queen que ansiamos por ver em cena.
Sem dúvida, esta é uma montagem que merece todo o aplauso entusiasmado que recebeu da plateia. Já se pode considerá-la um marco na história operística local. Por parte da Ospa, segue numa ascendente que já se havia anunciado, por exemplo, na genial posta em cena de Orfeu e Eurídice, de Christoph Willibald Gluck, em 2019. Já de parte da Cors, mostra o amadurecimento e o crescimento de uma das mais animadoras iniciativas da cena cultural porto-alegrense dos últimos anos, não só por montar mais óperas e por sua crescente qualificação, mas também pelo modelo cooperativo que a estrutura e que parece se mostrar como um bom caminho para que artistas locais possam atuar.
Finalmente, é preciso realçar mais uma vez o quanto a junção de esforços dessas diferentes instituições culturais é fundamental para que obras grandiosas possam ser constituídas. No caso da ópera em Porto Alegre, sempre que isso acontece o resultado é positivo. Especificamente nesta montagem de I Pagliacci, a energia mobilizada tem um efeito impressionante: há momentos de arrepiar e sem dúvidas fica marcada na memória.
* Everton Cardoso é jornalista e crítico