Durante dois anos, os prédios centenários do campus central da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) estiveram vazios, devido à pandemia, e o silêncio predominou nas dependências das faculdades. Agora, com a retomada presencial e a ocupação dos espaços, o Unimúsica volta a fazer do campus um lugar vivo, de música, como era a proposta original do projeto cultural. Na edição deste ano, que ocorre de quinta-feira (17) a domingo (20), o festival Rasuras Transversais apresenta um apanhado do cenário contemporâneo da diáspora africana na música brasileira, com uma programação que combina shows no Salão de Atos, apresentações ao ar livre e encontros com artistas convidados e curadores em conversas e oficinas. Tudo gratuito e aberto ao público.
Criado em 1981, o projeto tem um histórico de pensar a diversidade na música. Nesta edição, que ocorre em novembro — um mês que comemora o Dia da Consciência Negra, bem como suas conquistas e contribuições para a cultura brasileira —, a proposta é celebrar a ancestralidade negra que forma o Brasil, com base em sons, palavras e gingas. O conceito foi pensado para trazer múltiplas vozes, explica a musicista e pesquisadora Rosa Couto, uma das curadoras do festival ao lado de Alan Brito, Ana Laura Freitas, GG Albuquerque, Lígia Petrucci, Nina Fola e Santa Júlia da Silva.
— O festival está preocupado em discutir música negra, fugindo de uma lógica estereotipada sobre o que ela é. O que a gente tentou foi trazer uma diversidade dessa produção, mostrando como isso conta um pouco da história da nossa relação com o continente africano, e valorizar essa história e mostrar o quanto ela e essas musicalidades são ricas — acrescenta.
A pesquisadora aponta também a possibilidade de extrair aprendizados no ambiente universitário, que musicalmente costuma prezar pelo erudito, dentro de uma lógica europeia.
Conforme os curadores expõem no texto de apresentação do festival, o título Rasuras Transversais indica uma contranarrativa, propondo uma "marca audível" que busca transformar sentidos impostos pelo colonialismo. "A rasura, aqui, é lida em seu potencial de transgressão e de intervenção na lógica eurocentrada do bom e do belo", explicam.
Pluralidade
O festival trará diferentes manifestações artísticas, do jazz ao samba, passando também pelo rap e hip hop, entre outros, apostando na experimentação e em novos protagonistas. A abertura, nesta quinta-feira (17), às 20h, fica por conta da cantora e compositora paulistana Jup do Bairro. A artista trans fornecerá uma amostra de sua turnê, que está chegando ao fim, apresentando músicas do seu primeiro EP, Corpo sem Juízo (2020), que conta com participações especiais, como da cantora Linn da Quebrada, e que lhe rendeu o título de Revelação do Ano pelo Prêmio Multishow. Ela também tocará outras faixas, como Sinfonia do Corpo e Sou Eu.
Para além do peso da responsabilidade, Jup se sente honrada em ser a atração inaugural dessa programação "tão rica e potente". Antes do show, às 14h, a artista participará de uma conversa com o público. Ela destaca que o festival é uma oportunidade de escrever História.
— A possibilidade de democratizarmos esses espaços acabam gerando sonhos. Sonho de se sentir pertencente, de se visitar, visitar o outro, reconhecermos nossas semelhanças e diferenças. E assim, irmos para além da representatividade. Estamos vivendo um momento de ressignificarmos muita coisa, e reconhecer um Rio Grande do Sul preto também faz parte disso — comenta. — Porto Alegre e o Estado têm sim uma grande influência europeia, mas é preciso ter cuidado para não generalizar, pois é também um lugar preto, e, com isso, de cultura e luta preta.
Na noite seguinte, na sexta-feira (18), o músico, pesquisador, professor e poeta baiano Tiganá Santana estreia na Capital, com um show no Salão de Atos, às 20h. Primeiro compositor brasileiro na história fonográfica do país a apresentar um álbum com a presença de canções em línguas africanas, em 2010, ele traz ao Unimúsica um repertório que abrange todo o seu trabalho, incluindo o mais recente, Vida-Código (2019), que constou entre os 20 melhores discos lançados no mundo, de abril a junho de 2020, no World Music Charts Europe.
— Acho absolutamente relevante, sem dúvida, e significativo em termos coletivos, trazer para uma programação musical ligada à universidade artistas que têm uma relação com as poéticas negras — afirma. — É uma satisfação poder ir nesse contexto, mas, sobretudo, pensando numa partilha artística com as pessoas em Porto Alegre.
Santana também participa de um bate-papo com o público antes do show, às 14h. O pesquisador destaca a possibilidade de conversa com a comunidade negra, que considera bastante presente e forte em Porto Alegre, relembrando ainda a participação de figuras fundamentais do Rio Grande do Sul na eleição do dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra.
O músico considera significativo efetuar esse trânsito neste momento, levando poéticas negras para diferentes regiões do país:
— A gente vive um momento político absolutamente crítico da democracia brasileira, e, por outro lado, poder ter manifestações dessa ordem é algo importante.
Programação abrangente
A dança também estará presente na programação, dialogando com a música. Nas linguagens artísticas da cultura afrobrasileira, conforme Rosa Couto, não ocorre o mesmo recorte de uma visão eurocêntrica, que separa música, dança, teatro, cinema e assim por diante. Aqui, tudo está interligado e passa pela questão do corpo — que é uma unidade coletiva de existência política e lugar primordial da memória negra, conforme os curadores.
Isso fica evidente no fim de semana, quando o festival se intensifica, com apresentações das duas mais premiadas escolas de samba do Carnaval de Porto Alegre: a Imperadores do Samba, no sábado (19), e a Bambas da Orgia, no domingo (20). Além disso, nos dois dias, na escadaria em frente ao Centro Cultural da UFRGS, Felix, Turva, Gugu e La Twins, artistas do Coletivo Turmalina, revezam-se para acrescentar à programação suas pesquisas sobre música eletrônica.
Ainda no sábado, o pianista e compositor pernambucano Amaro Freitas, um dos principais nomes da cena atual do jazz, sobe ao palco com Sankofa, show de seu terceiro e festejado disco. Para finalizar, no domingo, haverá o encontro de dois rappers gaúchos, o pelotense Zudizilla e a porto-alegrense Cristal, que apresentam seus trabalhos mais recentes, respectivamente, Zulu Vol. 2: De Cesar a Cristo (2022) e o EP Quartzo (2021).
E os curadores dão o tom do que o público pode esperar: "Prepare-se para uma programação que traz a dança, o êxtase e a revolta encarnados. Se toda a música tem cor, não sabemos, mas certamente é negra a brasileira."
Confira a programação de shows:
Quinta-feira (17):
- 20h - Jup do Bairro - Salão de Atos da UFRGS
Sexta-feira (18):
- 20h - Tiganá Santana - Salão de Atos da UFRGS
Sábado (19):
- 17h - Imperadores do Samba - pátio do campus central da UFRGS
- 18h - Felix + Turva (Coletivo Turmalina) - Centro Cultural da UFRGS
- 20h - Amaro Freitas - Salão de Atos da UFRGS
Domingo (20):
- 17h - Bambas da Orgia - pátio do campus central da UFRGS
- 18h - Gugu + La Twins (Coletivo Turmalina) - Centro Cultural da UFRGS
- 20h - Cristal e Zudizilla - Salão de Atos da UFRGS
Confira a programação de atividades:
Quinta-feira (17):
- 14h - Conversa com Jup do Bairro, com mediação de Nina Fola - Centro Cultural da UFRGS
Sexta-feira (18):
- 14h - Conversa com Tiganá Santana, com mediação de Alan Brito - Centro Cultural da UFRGS
Sábado (19):
- 10h - Oficina "O jazz autoral no mercado da música", com Amaro Freitas - Centro Cultural da UFRGS
Segunda-feira (21):
- 15h - Exibição do filme Vozes do Silêncio e debate com Zudizilla, com mediação de Nicolas Collar - Sala Redenção - Cinema Universitário. Inscrição deve ser feita por meio de formulário no site.
Os encontros e as apresentações ao ar livre têm entrada franca. A retirada de ingressos para os shows do Salão de Atos da UFRGS, mediante doação de 1kg de alimento não perecível, pode ser realizada das 8h às 20h (exceto nos finais de semana e feriado), no Centro Cultural da UFRGS (Rua Eng. Luiz Englert, 333).