Quem olha para as estantes das livrarias e enxerga nomes como Jeferson Tenório, Itamar Vieira Junior e Djamila Ribeiro, além da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, pode ter a impressão de que há muitos escritores negros surgindo e que a questão racial nunca foi tão representada na literatura.
Autor de O Avesso da Pele (2020), Tenório olha com reserva para a visibilidade dada hoje a autores negros. Adepto de uma teoria chamada afropessimismo, que defende cautela, por parte dos negros, às benesses concedidas pelos brancos, o patrono da Feira do Livro de Porto Alegre do ano passado considera que esse espaço conquistado no meio literário deve, sim, ser comemorado, mas não como um problema resolvido.
Os negros ainda são poucos entre prateleiras repletas de escritores brancos.
— Somos minoria. O que está acontecendo é que os autores negros estão aparecendo mais em jornais, suplementos e premiações, e isso passa a sensação de que há muitos negros sendo publicados.
A live "Uma abordagem multidimensional do racismo" — que ocorre nesta sexta-feira (12) às 19h30min e pode ser acompanhada no site e nas redes da Feira — vai contextualizar o tema. Para o sociólogo Jessé Souza, que falará no evento, o termo representatividade passa a ideia de que basta dar espaço para um negro ter sua voz que a questão racial estará resolvida. Em sua avaliação, um negro que se destaca não é sinal de que a discriminação terminou: é apenas um negro que conseguiu abrir caminho em uma sociedade desigual, enquanto a maioria segue marginalizada.
— Esse processo de ascensão individual de pessoas negras existe há 500 anos. O termo representatividade é um grande engodo e envenena o debate brasileiro sobre racismo — diz Souza.
A socióloga e ativista Nina Fola, que vai mediar o bate-papo ao lado do jornalista Daniel Quadros, dá um exemplo que vem da própria Feira do Livro: o evento só foi ter um patrono negro — Tenório — em 2020, após décadas de patronato.
— Nada mais justo o Tenório ser escolhido como patrono, mas não pode servir como um "já colocamos um de vocês lá". Esse nível de representatividade já não serve mais, não em um país em que somos mais da metade da população — argumenta Nina.
Finalista do Prêmio Jabuti com Os Supridores (2020), o porto-alegrense José Falero entende que os negros precisam vencer três gargalos para ganharem mais espaço na produção literária: a oportunidade e o incentivo para escrever, a chance de ser publicado e, por fim, a divulgação de seu trabalho.
— Mas se observa um progresso, que tem a ver com as políticas públicas das últimas duas décadas, que mudaram o perfil de quem chegou às universidades — aponta.
Contextos
A forma como os negros aparecem na literatura também é tema para debate. Falero, por exemplo, começou a ler aos 20 anos. Como não tinha dinheiro para comprar livros, partiu para obras disponíveis na estante dos pais, todas escritas por brancos. Na época, ele não tinha consciência sobre identidade racial e sequer se enxergava como negro. Filho de mestiços, nasceu com a pele mais clara. Só mais tarde Falero foi conhecer a literatura escrita por negros, o que o ajudou a se formar como escritor:
— Quando comecei a trabalhar e comprar meus livros, me deixei guiar por esse status quo racista. Fui ler Dostoiévski, nem fazia ideia desse movimento negro na literatura. Só fui ler negros em 2019. Foi uma espécie de resgate. Tem sido como me encontrar. É o melhor dos mundos. Unir a maravilha da palavra escrita com personagens, eventos e circunstâncias que têm a ver com minha subjetividade.
Mãe de duas crianças, Nina comprou para os filhos livros infantis de Lázaro Ramos. São obras em que crianças negras vivem desventuras típicas da infância, sem, necessariamente, levantar o debate da questão racial. Na visão de Nina, é importante que a literatura naturalize a vida dos negros e que não os represente somente em realidades marginalizadas.
— Para esse personagem ser naturalizado, ele precisa existir mais, e não somente em novela de época, escravizado. Ele precisa ser retratado em outros contextos, existindo o tempo todo, não só em novembro, no Dia da Consciência Negra — defende a socióloga.
Tenório concorda que existe um anseio por parte dos negros de serem retratados em outros cenários além do contexto de desigualdade e preconceito. Por outro lado, defende que deixar de mencionar os percalços sofridos por causa da cor da pele seria como dar as costas à realidade.
— É uma tensão que ocorre e não está resolvida, porque o Brasil não resolveu a questão da escravidão. É muito difícil que a gente, como autor, consiga abordar outros temas enquanto corpos negros estiverem morrendo. O que a gente quer, obviamente, é chegar nesse lugar de naturalizar o negro em várias situações, mas ainda teremos muitos livros para tratar desse assunto.