Por Vinícius Brum
Cancionista, mestre em Literatura
O episódio que deflagra o surgimento da Califórnia da Canção Nativa é conhecido, pelo menos entre aqueles que estiveram ou estão imersos no ambiente dos festivais. Por ocasião dos 30 anos do evento, Cícero Galeno Lopes escreveu: “Em Uruguaiana, uma emissora de rádio AM resolveu promover festival de música popular. Vários grupos participaram, entre os quais o Grupo de Arte Nativa Marupiaras. Por não ter se classificado, o grupo quis saber o motivo da desclassificação. Soube, então, que a peça que defendera era regionalista, gauchesca, como se costuma dizer inadvertidamente, como se também se falasse em arte brasileiresca. Esse foi o ovo”.
Dessa forma, ainda que sucinta, pode-se ser descrito o nascimento do original festival que acabou por gerar um movimento que está incrustado na cultura sul-rio-grandense nessas cinco décadas. Não que isso, lá no nascedouro, pudesse ser vislumbrado.
A Califórnia surge pela inconformidade de jovens artistas ante uma desclassificação gerada não por apreciações estéticas e sim por uma postura de não reconhecimento de uma pretensa identidade. O que provocou a indignação dos alijados do 1º Festival da Música Popular da Fronteira promovido pela Rádio São Miguel não foi algo ligado à qualidade da canção apresentada – a milonga Abichornado, de Colmar Duarte e Júlio Machado da Silva, com interpretação d’Os Marupiaras –, mas a justificativa de que a desclassificação se deu por ser uma canção regional gaúcha (gauchesca!?).
Os organizadores do evento por certo jamais poderiam suspeitar o tamanho do vespeiro que estavam cutucando. Reza a lenda que a madrugada que sucedeu o festival foi embalada por serenatas dedicadas pelos descontentes a cada um dos integrantes da comissão julgadora que havia perpetrado o “ultrajante veredito”. Possivelmente também nessa madrugada se possa encontrar uma das sempre provisórias origens do mais afamado festival de música do Rio Grande do Sul.
Ainda que as motivações que supostamente deram origem à primeira edição do festival tenham sido essas, temos de ressaltar que, esteticamente, tanto a canção desclassificada como a forma de compor que a Califórnia consolidou, desde o princípio, era muito distante do linguajar do homem do campo.
No festival e em suas reproduções posteriores, o que se evidencia – e isso já se faz perceber de forma clara no LP da 1ª Califórnia – é uma sofisticada elaboração cancionista.
Lembremos de duas condições verificadas por Jorge Luis Borges para o surgimento e a fixação da gauchesca platina: estilo de vida dos gaúchos (homens do campo) e uma cultura urbana que se identifica com ele. É, possivelmente, orientado por essa identificação que a obra de João Simões Lopes Neto figura entre as maiores no Brasil. Através da compilação das Lendas do Sul, Simões percorre a formação histórica do nosso Estado. A M’boitatá nos diz do homem primitivo, o índio, senhor destas terras antes da chegada do branco europeu; a Salamanca do Jarau narra a interação dos jesuítas com os índios, e Negrinho do Pastoreio dá conta da primeira organização social com base no modelo da estância e da escravidão negra. Mas é nos Contos Gauchescos que Simões nos apresenta o gaúcho modelar: Blau Nunes, o vaqueano. E é pela voz de Blau que aquele estilo de vida é narrado. Essa voz é verossímil. Porque é a voz de um pertencimento. Essa temática recorrentemente servirá de inspiração para canções no ambiente dos festivais nativistas. Assim como a substância folclórica e literatura regional também serão fontes mais ou menos presentes nessa produção cancionista.
A primeira edição da Califórnia da Canção Nativa do Rio Grande do Sul ocorreu a partir dos dias 8 e 10 de dezembro de 1971, com as etapas eliminatórias do concurso. Foram apresentadas 36 canções, das quais 18 foram selecionadas para duas noites semifinais, em 17 e 18 de dezembro. Desta fase foram eleitas as 10 canções finalistas, que concorreram aos prêmios oferecidos pelo festival na noite de 19 daquele mês. O troféu máximo, que veio a se configurar num ícone dos destaques da canção regional gaúcha, era a Calhandra de Ouro. Mesmo com as interrupções sofridas nestes 50 anos, o troféu continua em disputa.
A juventude, principalmente nas décadas de 1980 e 1990, aderiu ao movimento de maneira entusiástica. Dos festivais nativistas surgiram canções de largo reconhecimento público, e a consagração de carreiras artísticas inúmeras.
O que se seguiu, principalmente depois da primeira década de existência da Califórnia, foi uma vertiginosa proliferação de eventos análogos ao modelo surgido há 50 anos em Uruguaiana. Salvadas as peculiaridades microrregionais, os regulamentos que orientaram o surgimento desses festivais por todo o território rio-grandense, e também fora dele, seguem o modelo proposto em 1971.
Neste 2021 comemora-se o cinquentenário da Califórnia da Canção Nativa do Rio Grande do Sul. E, por consequência, do surgimento dos festivais que se constituíram no fenômeno do Movimento Nativista, que influenciou sensivelmente o comportamento de uma parcela significativa do povo rio-grandense. A juventude, principalmente nas décadas de 1980 e 1990, aderiu ao movimento de maneira entusiástica. Dos festivais nativistas surgiram canções de largo reconhecimento público, e a consagração de carreiras artísticas inúmeras.
Ainda que o auge do fenômeno esteja um tanto distante desta segunda década do terceiro milênio, os festivais nativistas ainda atraem considerável público e oportunizam continuadamente o surgimento de novos intérpretes, cancionistas e instrumentistas. Creio que existam muitos motivos para se comemorar.