Por Marcélo Ferla
Jornalista especializado em cultura pop
A música pop evolui com apropriações e rupturas. Frank Sinatra mixou Tommy Dorsey com Louis Armstrong com Bing Crosby e inventou a ideia de ídolo popular; Elvis Presley simbolizou o rock, a soma do negro blues com o branco country que inventou a ideia de jovem; Bob Dylan, que emulou o country de Woody Guthrie, rompeu com os fãs para inventar o anti-herói, depois de verter a poesia beat em rebeldia sonora; Berry Gordy desafiou o status quo e inventou uma gravadora para divulgar a soul music – e depois foi desafiado por Stevie Wonder e Marvin Gaye, que romperam com o modelo açucarado da Motown e devolveram a alma negra ao gênero; Iggy Pop e seus parças de Detroit inventaram o punk, o estilo tosco de reler o rock que rompeu com a megalomania do gênero; The Clash inventou o punk político e acrescentou reggae na receita, para romper com o establishment; João Gilberto e Jorge Ben inventaram maneiras diferentes de tocar samba e romperam com as estruturas da música brasileira; Kool Herc inventou um jeito diferente de tocar discos e começou a parir o hip-hop.
E Florian Schneider, o alemão que teve a morte anunciada na última quarta-feira, aos 73 anos, de câncer? Ele formou uma banda para inventar o futuro da música pop.
Schneider e Ralf Hutter fundaram o Kraftwerk em 1970, em Düsseldorf. Gravaram quatro discos experimentais até o lançamento de Autobahn, de 1974, quando encontram o formato ideal para seu software sonoro ao investirem no minimalismo eletrônico, no retrô-futurismo e na melancolia sintetizada, como se as máquinas tivessem alma. O Kraftwerk ganhou o reforço de Karl Bartos e Wolfgang Flur a partir da turnê de Autobahn, obra-prima que preconizou a maior ruptura da música pop desde o amadurecimento dos Beatles, que transformaram o rock em state of art. Com Radio-Activity (1975), Trans Europe Express (1977) e Man Machine (1978), o grupo levou adiante o conceito estético e musical em que a mão humana pilota computadores para refletir o espírito do tempo. Frios e com batidas repetitivas, os álbuns versam sobre a sisuda Alemanha nos anos de 1970, em eterna reconstrução, ávida por apagar o passado e em busca de afirmação cultural.
O fato de Düsseldorf ser o centro nervoso do coração industrial daquele país naturaliza o uso de máquinas e a autodefinição do quarteto, operários do som, em vez de artistas. A sobriedade do grupo reforça o conceito: eles viviam enfurnados no estúdio Kling Klang, sem telefone, não gostavam de dançar, nem de aparecer. A notícia de que Schneider teria falecido uma semana antes do anúncio oficial é o requinte definitivo da vocação para o anonimato.
Praticamente nada de relevante na música pop pós-Kraftwerk prescinde de sua influência, também (mas não apenas) porque os computadores invadiram o cotidiano do planeta. Da formidável Trilogia de Berlim, de David Bowie, o álbum Heroes (1977) tem até uma faixa em homenagem ao músico falecido: V-2 Schneider. Ian Curtis, líder do grupo de rock mais influente da década de 1980, o Joy Division, era fissurado pelos alemães.
Divisor de águas que remete ao início do rock, por mixar música negra com branca, Planet Rock, de Afrika Bambaataa, principal idealizador do hip-hop, tem como base melódica um hit do Kraftwerk, Trans Europe Express. Ao conectar o Bronx nova-iorquino com Düsseldorf, o petardo de 1982 preconizou o funk eletrônico, redimensionou o rap, formatou o electro e validou a ideia do DJ compositor, ao mesmo tempo em que a house music e o techno estavam sendo concebidos no underground. Próxima parada: o culto aos DJs e a consolidação da música eletrônica como um estilo popular a partir dos anos de 1990.
Florian Schneider está morto. O legado do seu Kraftwerk, porém, permanece em alto e bom som, nas batidas de DJs comerciais de pen-drive como Alok, ou como um elemento sonoro do state of art do grupo que melhor reflete as angústias do século 21, o Radiohead.
Florian Schneider inventou o futuro da música pop.