No começo, lemos um daqueles alertas que funcionam mais para excitar do que como um aviso. Atenção, você está prestes a ver imagens perturbadoras de violência armada, "mas isso acontece todos os dias e tem de parar".
É assim que somos convidados a entrar no mundo de God Control, o clipe da faixa mais politizada de Madame X, o novo álbum de Madonna. Todos avisados, estamos diante de uma Manhattan iluminada, vista do Brooklyn. Vozes de locutores ao fundo dão as primeiras notícias sobre o massacre da boate gay Pulse, ocorrido há três anos na Flórida, quando um atirador matou 50 pessoas e deixou outras 53 feridas.
Aparece então, num quarto perdido no tempo, uma compenetrada e rejuvenescida Madonna. Em clima retrô, sentada a uma escrivaninha, ela datilografa a letra da canção. Usa luvas pretas de tule e máquina Smith Corona Electra 210, clássico dos anos 1960.
Na parede à frente, para não pairar dúvida sobre o engajamento cool de sua Madame, vemos retratos em preto e branco de Simone de Beauvoir, Frida Kahlo e Angela Davis.
Com a pegada cinematográfica do seminal Thriller, de Michael Jackson, de 1983, o clipe navega em camadas temporais — mudam as épocas e os horários ao ritmo das sugestões sonoras dessa neon — "protest song" de Madonna.
Repetido por um coral juvenil, o refrão "we lost God control" (perdemos o controle de Deus) ecoa uma referência à causa do controle de armas ("gun control"), tema quente da política americana — e agora também da brasileira.
O que seria a parte mais chocante, a reconstituição dos tiros na Flórida, é apresentada em flashes. E o que salta aos olhos, no final, é um espetáculo de estetização fashion da violência. Contando, claro, com a caução preventiva do ativismo, que serve para passar o pano no intuito mais mercadológico da obra.
Um parênteses: é o que se vê em parte da "arte política" contemporânea, que se vale, num circuito mais high brow, da defesa de causas para legitimar uma produção fraca.
Não deixa de ser interessante que uma sobrevivente do massacre, Patient Carter, tenha criticado a encenação do ataque em God Control:
— Entendo que ela estava tentando conscientizar sobre o controle das armas, mas não acho que tenha sido a melhor maneira de falar sobre isso.
Madonna não está sozinha nessa onda de música e violência glamourizada em alta nas redes sociais. Além dos antecedentes menos distantes, de Childish Gambino a Rihanna, também a barraqueira Cardi B lançou, no mesmo dia da semana passada, Press, sua versão de erotismo, sangue e hip-hop. Dirigido pelo incensado "badass" Jora Frantzis, o clipe é um sedutor festival de provocações, que mistura crime, nudez e ostentação.
Os resultados até agora se contam em visualizações, que escalam aos milhões.