Everton Cardoso
Jornalista e crítico
Quando Mariza fez silêncio entre dois versos do fado Semente Viva, estava claro que havíamos chegado ao momento mais emblemático do concerto que encerrou, em Porto Alegre, a turnê da fadista portuguesa pelo Brasil. Foram apenas alguns segundos, em termos objetivos, mas que, pela profundidade do impacto, mostraram a potência da música que ouvíamos: ali estava a marca maior do "ser português", a saudade.
A voz que ecoara nas três primeiras canções da noite e agora entoava a quarta, nos havia deixado qual os marinheiros que partiam das terras portuguesas nas míticas histórias das navegações. Deixavam em quem ficava a combinação da tristeza com o desejo da volta. E, quando Mariza retomou o canto, foi como se anunciasse que o resto da apresentação conteria, ao mesmo tempo, o alento da ausência e a perspectiva de um fim. Nada mais lusitano, nada mais fado do que isso.
Desde o começo da apresentação, que mesclava repertório de seu álbum mais recente com sucessos anteriores, a cantora já havia estabelecido a que viera: o conhecido fado Loucura – única canção entoada sem amplificação – mostrou a força de uma das vozes mais conhecidas do canto em língua portuguesa e que já se apresentou mundo afora. “Poetas do meu país/ Troncos da mesma raiz/ Da vida que nos juntou/ E se vocês não estivessem a meu lado/ Então não havia fado”, dizia a letra que deu o tom da noite.
A filha de pai português e mãe moçambicana que começou a cantar aos cinco anos completa neste ano duas décadas de carreira e, pela primeira vez, interpreta uma canção com poema de sua autoria.
— Não é fácil cantar minhas próprias palavras — abriu-se sobre Oração.
A voz e o canto de Mariza – que já conhecíamos bem das gravações – receberam como complemento a impressionante presença cênica da artista nesta primeira passagem da fadista pela capital gaúcha. De pé, sozinha no centro do palco, sentada sobre a plataforma onde estavam os instrumentistas, de cócoras sob um holofote, dançando: não importava como estivesse, se fotografada, sem dúvida seria flagrada numa pose emblemática e forte, tal a elegância e precisão com que se movimentava.
A desenvoltura em cena também se traduziu em momentos de interação com o público e de bom humor: instigou quem acorreu ao Teatro do Bourbon Country a acompanhá-la em Trigueirinha, canção que usou para abrir o momento em que fazia a transição de um modo melancólico de ver o amor para outro mais alegre.
Também o figurino contribuía para a imagem dela no palco: o vestido escuro, com pontos brilhosos, leve, semi-transparente e longo até o chão, dava a sensação de que Mariza flutuava pelo chão ao se mover. Mas nada se compara ao momento em que, de costas para a plateia, ergueu saia e sambou durante a canção Amor Perfeito. A plateia, claro, reagiu efusivamente.
No bis, Mariza interpretou uma impressionante versão do Canto de Ossanha, composição de Vinicius de Moraes e Baden Powell. Dissera ela, antes, que é uma das músicas que lhe ficaram “tatuadas na alma” com a voz de Elis Regina – cantora que ela ouvia desde a infância em discos de vinil. Pois essa exatamente é a sensação que se tem depois do concerto, mas agora numa versão com um sotaque ibérico.
Impressionou a sensibilidade da cantora ao anunciar Melhor de Mim: ela descreveu a canção como um meio para se suportar momentos ruins com a perspectiva da melhora – uma saudade do que ainda não se viveu, talvez. Estava, como havia dito ela instantes antes, feita a ponte entre Porto Alegre e Portugal. Nunca uma canção caiu tão bem: a nação portuguesa se vê num momento de otimismo, e somente a sensibilidade de uma artista deste calibre conseguiria nos ofertar de modo tão generoso um norte para os momentos confusos e difíceis por que nós brasileiros passamos neste 2019.