Líder do Racionais MC's, Mano Brown se apresenta nesta sexta-feira (10), no Pepsi On Stage, em Porto Alegre, ao lado de Criolo, marcando o encontro de duas gerações do rap brasileiro. O show é uma celebração do sucesso do gênero musical no país nas últimas três décadas — ficaram de fora do repertório as músicas de Boogie Naipe (2016), disco-funk em que Brown se inspira nos bailes black, e as canções de Espiral da Ilusão (2017), álbum de sambas de Criolo. Em entrevista por telefone a GaúchaZH, Brown falou sobre o show desta noite e a parceria com o dono do hit Não Existe Amor em SP, as mudanças pelas quais passou o Brasil nos últimos 30 anos, tempo de existência do grupo do qual faz parte, e o que espera das eleições deste ano. O tom em relação ao futuro do país é pessimista:
— Eu acho que o povo brasileiro se comporta como criança mimada, que, quando a mãe não dá o que ele quer, se vinga. Enquanto as pessoas ainda estiverem buscando candidato carismático para votar, vai ser desse jeito aí. Brasileiro tem preguiça de procurar saber sobre as pessoas, quer que alguém solucione os problemas dele de forma rápida.
A seguir, confira os principais trechos da entrevista.
Como tem sido fazer esses shows ao lado do Criolo?
Aos olhos de outras pessoas, poderia não ter nada a ver o som de um e de outro. Mas a gente vem da mesma raiz, de som, de música negra, de traço de matriz africana. Viemos da mesma região de São Paulo, zona sul, Santo Amaro. Tem muito mais coisas em comum do que não. O Criolo é um cara totalmente pacífico, um cara de linguagem mais leve, mais agregador. É de convívio fácil, talentoso, manja de som, sabe o que quer. E o meu rap é mais cortante, quem não ama odeia. O som do Criolo é pós-internet, e algumas coisas que eu canto são de antes. Essa fase da internet é um outro universo. Muitas das músicas que canto representam um retrato fiel da época. Algumas pessoas têm saudade daquelas músicas, daquela época, porque era a lembrança afetiva delas, da adolescência, da infância. Entendo que o pessoal que gosta dessas músicas parece que quer tudo de novo, do mesmo jeito, sem mudar nada. E para mim isso não é tão bom, porque minha mente continua funcionando, o mundo mudou e a minha música acompanhou essas mudanças, da visão sobre si mesmo, da periferia sobre o mundo e talvez do mundo sobre a periferia. Convivendo nas ruas, percebo mudanças na mentalidade, na vestimenta. Eu passo isso com as músicas novas.
E as músicas antigas dos Racionais? Elas não têm mais muito a dizer para as pessoas?
Ali tem mensagem religiosa, familiar. Essas coisas a gente não apaga da mente da gente. Agora, se a sociedade está precisando ouvir essas músicas, é um sinal que, de alguma forma, ela regrediu. Não é bom quando músicas antigas continuam fazendo sentido. Aqueles assuntos já eram para terem sido superados, e alguns já foram. A raça negra, por exemplo, tem alguns assuntos superados. Tem coisas que se falavam no início dos anos 1990 que hoje em dia já foram superadas. Então, aquele discurso de base pode fazer algum sentido para quem acabou de chegar. Mas nós, que já estamos nessa luta há tempo, queremos colocar as ideias para frente. Não queremos ficar com um discurso arcaico, clichê. Eu prefiro liberdade. Quando estou com raiva, estou com raiva. Quando não há motivo, não há por que fazer uma música com raiva, com uma receita de seis anos atrás. A música é viva. Queria que ela fosse vista dessa forma.
Eu acho que o povo brasileiro se comporta como criança mimada, que, quando a mãe não dá o que ele quer, se vinga.
Como foi a escolha das músicas do show em parceria com o Criolo?
Tenho o meu show com a minha manda Boogie Naipe. Tem os Racionais também, que têm um disco de 2014 (Cores & Valores) que considero excelente. E tem essas músicas que eu nunca mais tinha cantado na vida. Como esse show com o Criolo é para ser diferente, não é o Racionais nem o Mano Brown solo, pensei em fazer um repertório mutante, não fixo, misturando algumas músicas que eu não tinha mais cantado. É lógico que, depois de duas apresentações cantando essas músicas, tenho as minhas percepções sobre elas e a forma como o público as entende, hoje em dia, cantando. Não me agrada muito fazer um show de flashbacks.
E a eleição deste ano? Você tem acompanhado a movimentação dos candidatos e o cenário pré-eleição?
Acho que o povo brasileiro se comporta como criança mimada, que, quando a mãe não dá o que ele quer, se vinga. Enquanto as pessoas ainda estiverem buscando candidato carismático para votar, vai ser desse jeito aí. Brasileiro tem preguiça de procurar saber sobre as pessoas, quer que alguém solucione os problemas dele de forma rápida. Enquanto o brasileiro não aprender a analisar a caminhada do político, a acompanhar a vida política e social do país, vai ser dessa forma. Cada ano o brasileiro escolhe um motivo para votar. O Collor foi porque era bonito. O Lula ganhou porque tinha aquela pressão por mudança em cima do Fernando Henrique. Existia fome, existia uma defasagem de classe. A massa queria ver a coisa mais justa. No segundo mandato da Dilma, todos os direitos e benefícios conquistados tiveram um ligeiro declínio e o povo gemeu. Sentiu a mudança e procurou uma solução rápida: derrubar a Dilma. Não foi o povo que a derrubou, mas foi complacente e conivente. A televisão fez a mente do povão, que quer solução rápida. A Dilma passou por um processo de desrespeito muito pesado. E a gente viu que o Brasil precisa evoluir muito. Continua sendo um país machista, racista e homofóbico. Tudo isso foi mostrado, sentimentos que antes não eram expressados. As pessoas não sabem por que o Lula está preso. Vejo as pessoas se repetindo nas ruas igual papagaio sem saber o real motivo.
Teu sentimento parece de muito pessimismo para a eleição...
A gente não tem candidato nem eleitores. Não é só candidato que falta. As pessoas têm alguma coisa em mente? Não têm. Tem uma massa para manobrar. Agora, tem mente pensante? Não tem. O eleitor não sabe em quem votar e nem por quê. Qual é o perfil do eleitor hoje? Ele quer mordomia, ser primeiro mundo? Já não sei. O brasileiro quer justiça, pena de morte, maioridade penal de 14, 12 anos... Eu não sei qual é o perfil do brasileiro hoje. O brasileiro é honesto? Ele quer um presidente honesto, mas ele age com honestidade? Será que a gente não tem o governo que merece?
Não é bom quando músicas antigas continuam fazendo sentido. Aquelas assuntos já eram para terem sido superados, e alguns já foram.
Então o luto permanece ? (Em entrevista para GaúchaZH publicada em fevereiro deste ano, o rapper afirmou que não tinha nada para comemorar no aniversário de 30 anos do grupo Racionais MC's e que estava de luto.)
Eu continuo de luto. Agora, o mundo não vai acabar porque estou de luto, a vida continua, tenho essa consciência. Tô de bico? Tô. Mas as coisas vão continuar. Vou ter que conviver com pessoas que pensam coisas com que eu não concordo. Dediquei 30 anos da minha vida por uma ideia que hoje parece ser dispensável, descartável. Era muita paixão da minha parte.
Mas o que você construiu ainda tem muita força, inclusive um disco dos Racionais virou leitura obrigatória no vestibular. (A Unicamp incluiu entre as obras de leitura obrigatória para o vestibular 2020 o álbumdos Racionais Sobrevivendo no Inferno, de 1997.)
A nossa música foi sempre atrelada à vida política e social do Brasil, ela respira rua. Eu antecipo pensamentos e comportamentos. E um pensamento que estou conseguindo prever agora é, principalmente para quem mora em São Paulo, que a mentalidade de quem ouve rap mudou muito. As pessoas querem mudanças. Querem ouvir aquilo (as músicas antigas dos Racionais), mas não querem viver aquilo de novo.
A periferia mudou muito então?
A periferia está procurando um rumo que ela nunca teve. Ela quer viver coisas que o rico vive porque isso é vendido. O governo Lula passou a impressão de que é possível viver uma vida mais igualitária. E o povão aprendeu a gostar dessas coisas, não quer mais perder. Então o povão quer a viatura na porta da casa dele, quer leis mais severas, mais cadeias. São coisas que os ricos e os pobres querem. As classes querem as mesmas coisas: segurança, conforto e comida. E isso vai refletir nas eleições e nas ruas também.
Tem muitas pessoas que dizem que preferem os Racionais das antigas e são Bolsonaro.
E o que significa esse show ao lado do Criolo, esse encontro de duas gerações do rap brasileiro? É um momento de celebração?
É difícil falar de festa, porque essas músicas dos Racionais não são festivas, principalmente essas que eu canto no show. Elas são um contraponto com as músicas do Criolo. Quando eu começo a cantar, fica uma tensão no ar. A visão do Criolo é menos pesada: governo Lula, morou? Olha os gêneros de música que apareceram no governo Lula, celebrando a vida, camarote, bebidas importadas, marcas caras. Nunca se falou tanto disso. No funk, no rap, no samba, na música regional. Virou uma linguagem universal. Isso é reflexo do governo que a gente teve. Mas as pessoas sentem saudade daquelas músicas antigas. É um comportamento dúbio. Vejo pessoas que me acompanham nas redes que dizem: "Viva Bolsonaro". Quando o cara vê traços em comum entre Bolsonaro e Racionais das antigas é para se repensar. É para o Brown repensar a vida. É contraditório. Isso é o Brasil. Como assim, mano?
CRIOLO E MANO BROWN
Sexta-feira (10), às 23h30min.
Abertura: DJ Dick Jay (20h) e Rafuagi (22h).
Pepsi On Stage (Av. Severo Dullius, 1995, Anchieta), em Porto Alegre.
Classificação etária: 16 anos.
Ingressos: de R$ 40 (com doação de 1kg de alimento não perecível) a R$ 85. Ponto de venda:Pier X, no shopping Iguatemi. Online: livepass.com.br (com taxa.)