Como já havia mencionado em texto anterior neste espaço, retomo considerações sobre a Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana. Como tema destes breves comentários, tenho as canções vencedoras dos concursos desde a primeira edição em 1971 – as Calhandras de Ouro. E a primeira é Reflexão, de autoria de Júlio Machado da Silva Filho (música) e de Colmar Duarte (letra), interpretada pelo grupo Os Marupiaras, do qual, além dos autores, faziam parte Cecília Machado e Ricardo Duarte. E, como convidado, o pianista Antônio Carlos Souza (Caco).
Trata-se de uma canção que se reveste de uma originalidade inaugural. É uma alma gaúcha que canta, que se interroga e que se revela pendulando, na recorrente insatisfação humana, entre ser e não ser, estar aqui e desejar estar além, partir e ficar – a permanência e a finitude. Dentre os elementos textuais indicativos do lugar desde onde o cantar se manifesta, encontramos referentes que se movem como vento (pampeiro – única referência explícita ao sul), rio, nuvens em contraste com a fixidez de estrela, barranca, moirão, além da eterna contraposição entre céu e terra. Tudo isso, diz o canto, "para fugir à tristeza, por buscar esquecimento (...), sem conhecer paradeiro. Em vez de rio ser barranca, em vez de vento, moirão, em vez de nuvem, semente, em vez de estrela, ser chão".
Como costumo frisar, reconheço a canção popular como um gênero no qual o texto e a música se equilibram de maneira quase indissociável. Assim se dá com a primeira das Calhandras. A letra desenvolve-se justapondo elementos contrastantes. A melodia e a harmonização vocal e instrumental contribuem decisivamente para a construção de sentido. Cada nota dando a cada sílaba sua melhor possibilidade sonora. Cada sequência de acordes, cada desenho de vozes, compondo com o texto a eloquência estética da canção. Dizendo de forma muito simples, o texto poético do Colmar parece ter sido feito para a composição do Julinho, e a interpretação d'Os Marupiaras produz o fino acabamento da obra. Lá se vão 45 anos. Reflexão é uma das grandes do nosso cancioneiro. Ouvi-la, há de ser sempre um deleite.