TEXTO: GUSTAVO BRIGATTI
IMAGENS: ANDERSON FETTER
Jesus Cristo está no palco. Ao som de uma batucada incessante, começa a tirar a roupa, no que é acompanhado por seus discípulos. Completamente nus, exaltam o amor livre entre si e entre o público. Depois, é Satanás quem ocupa o mesmo espaço. Levado por uma cumbia eletrônica incendiária, excita a libido da multidão – embora, pudico, prefira manter-se vestido.
Os dois atos poderiam ser parte de um devaneio lisérgico provocado pelo guru do LSD Timothy Leary durante uma maratona de filmes do cineasta Alejandro Jodorowsky apresentada pelo poeta Allen Ginsberg. Mas não é preciso ir tão longe: o primeiro foi um trecho do provocativo espetáculo do grupo gaúcho Bloco do Laje; o segundo, uma mostra da rave latina infernal promovida pelos mexicanos do Sonido Satanás. Separadas por um intervalo de algumas horas, ambas as atrações ajudaram a compor o espírito anárquico e libertário que se manifestou no último final de semana em Santa Maria, na 10ª edição do Morrostock.
LEIA MAIS
Morrostock faz dez anos com Liniker e Apanhador Só na programação
Entrevista: Liniker canta e representa
Meditação, sexualidade e vida em comunidade: 51 horas na Osho Rachana
Durante três dias, cerca de 2 mil pessoas do Rio Grande do Sul e de outros Estados enfrentaram todas as intempéries para celebrar a diversidade, o respeito e a liberdade, embaladas por muita música e em comunhão com a natureza. No bucólico Balneário Ouro Verde, encravado entre as montanhas do distrito de Arroio Grande, o Morrostock estabeleceu uma espécie de simulacro do sonho hippie – embora sua origem esteja em outro movimento contracultural: o punk.
Em 1998, o músico Paulo Zé Barcellos e sua banda, a No Rest, saíram do Rio Grande do Sul rumo ao Rio Grande do Norte a bordo de um Gol 1000 com um reboque atrelado. A cada cidade em que paravam, tentavam marcar algum show. Por incrível que pareça, a experiência fluiu bem. Ao final da jornada, em Natal, veio a ideia de fazer o mesmo na Europa – desta vez, sem o Gol 1000 e o reboque. Entre 2001 e 2006, tocaram por todo o Velho Continente, em turnês nunca menores do que 45 dias.
– A gente ficava em ocupações que funcionavam como casas autogeridas, onde a pessoa comia, dormia, tinha acesso à internet, e também onde eram organizados festivais de quando em quando – lembra Paulo Zé. – Como estávamos por lá, participamos de alguns destes festivais e pensei que podíamos fazer o mesmo no Brasil. Me encantou a ideia de organizar um evento em que as pessoas pudessem passar o tempo todo no local, curtindo shows e convivendo.
Em 2006, contrariando seu nome, a No Rest decidiu descansar. Paulo Zé montou a Bandinha Di Dá Dó e, com ela, meteu o pé na estrada novamente, agora com uma van para levar bandas parceiras para o Interior. Em uma das paradas, topou com o Bar do Morro. Aos pés do Morro Ferrabraz, em Sapiranga, o espaço com ampla área verde e um bonito lago parecia perfeito para botar o projeto em prática. Inspirado pelo pai de todos os festivais, o Woodstock, nascia em 2007 o Morrostock, que juntava o ideário hippie do amor livre e comunhão com a natureza com o mantra punk do it yourself (faça você mesmo).
Desde então, foram oito edições anuais em Sapiranga e uma em Capela de Santana (além de uma celebração de Ano-Novo em Marau, em 2015, e outra na Olimpíada do Rio, este ano). Todas regidas pela vontade de estimular conexões entre pessoas e natureza – seja através das áreas de acampamento, da música, das oficinas, debates e uma série de atividades que acontecem (programadas ou não) durante os dias do festival.
– O Morro tem esse caráter libertário e humanista, de trabalhar com sustentabilidade, bioconstruções, essa grande congregação que existe entre as pessoas, as comunidades que se formam no camping. Tem gente, por exemplo, que casou no primeiro Morro e vem todos os anos trazendo a filha, que hoje já tem 10 anos – conta Paulo Zé.
Graças ao Prêmio Funarte de Programação Continuada para Música recebido em 2015 (R$ 200 mil), a 10ª edição, ao custo de R$ 350 mil, foi a mais bem estruturada, com dois palcos e 39 artistas, entre atrações locais (Apanhador Só, Pata de Elefante, Wander Wildner, Julio Reny, Identidade, Cartolas, Bloco da Laje), nacionais (Liniker, Boogarins, Ava Rocha) e internacionais (Cuatro Pesos de Propina, do Uruguai, Sonido Satanás, do México, Proyecto Gomez Casa, da Argentina).
– Nada contra artistas mainstream, mas o nosso negócio é mais o universo alternativo – comenta Paulo Zé.
O line-up privilegiou o rock, mas também se espraiou para outros gêneros – coisa que não pareceu incomodar o público. A roda de cigarros artesanais aberta pelo Bixo da Seda, por exemplo, deu lugar à roda punk dos Replicantes sem nenhum atrito. Uma das atrações mais aguardadas, a MPB cheia de balanço derramada por Liniker, foi tão bem acolhida quanto a MPB experimental de Ava Rocha. O dinamismo do Moda de Rock, que rearranja clássicos da música pesada para a viola, encantou a mesma gente que horas antes batia cabeça com o hardcore do Pegada Torta. E, no alto da madrugada de sábado para domingo, a audiência viu-se ensanduichada entre o rock progressivo do Músicas Intermináveis Para Viagem e o avant-garde eletrônico do Proyecto Gomez Casa.
Quem se cansava dos shows podia relaxar no rio que corta o balneário, visitar a feirinha de artesanato, repor as energias (foram 3,2 mil fatias de pizza, 10 mil latões de cerveja e mil litros de chope vendidos) ou curtir alguma das dezenas de oficinas, que cobriam os mais variados temas – de meditação budista e yoga a rapé medicinal, tarô e dança circular sagrada. Quer dizer: para quem decidiu fixar residência no Balneário durante os três dias (a grande maioria do público), o Morrostock foi uma festa sem fim.
Como um moto-contínuo que se alimenta das vibrações de seus componentes, havia sempre um show sendo realizado, uma oficina começando, alguém armando uma roda de violão ou chamando para um passeio até a cachoeira mais próxima. Isolado do contato com o mundo externo, sem acesso a internet ou telefone, a única preocupação do público era viver o momento – ou se perder nele. O burburinho constante e o excesso de atividades não davam muita chance para quem tem sono leve ou rotina espartana, não sendo raros os casos de quem dormiu no meio da tarde e atravessou a madrugada acordado, perdendo a noção do tempo e do tipo de refeição que estava fazendo – torrada com café passado às 22h e massa ao molho sugo vendo o sol nascer? Por que não? Escrito em letras psicodélicas em uma bandeira que servia de divisória em um dos acampamentos, o refrão de Sociedade Alternativa, de Raul Seixas, definia com muita propriedade a lógica pela qual se movimentavam os morrostockianos: "faça o que tu queres, pois é tudo da lei".
Carolina Minuzzi, 25 anos, nunca havia acampado na vida e tirou de letra a chuvarada que caiu durante o sábado. Gostou tanto da experiência no campo que fazia planos para, junto da amiga Vanessa Soares, 26, curtir o Psicodália, um dos maiores eventos do gênero, que ocorre na época do Carnaval em Rio Negrinho, Santa Catarina. A dupla, de Cachoeirinha, conseguiu transporte até Santa Maria bem ao estilo hippie moderno: em uma comunidade do Facebook de compartilhamento de caronas.
– É minha primeira vez no Morro e sei que virei mais vezes – afirma Carolina. – Os shows do Liniker e da Apanhador Só foram demais.
– Gostei de todas as bandas. Na real, a vibe é muito boa, então não tem como dar errado – diz Vanessa.
CRIANÇADA POR PERTO E RESPEITO
PELA LIBERDADE DE CADA UM
Alfani César Picoli era outro que tinha ido de carona até o festival, deixando seu sítio em Veranópolis para passar o final de semana no Balneário Ouro Verde. Com um casal de amigos, ele mantinha aceso o fogo onde um par de barracas assava carne e esquentava água para café e chimarrão. Mas não tinha preferências musicais.
– Não tenho ídolos, vim pelo astral, por essa energia maravilhosa daqui. Tá vendo aquela criancinha ali? Ela é nosso ídolo. Aqui ela vai aprender a amadurecer na música, que é o grande instrumento de transformação do mundo – filosofa.
Crianças, aliás, estavam por toda a parte. No colo dos pais, nos ombros dos avós, correndo pelos gramados. Murilo Bruxel Turrel, dois anos, distribuía "ois" para quem passasse. O estagiário de roqueiro, que vestia uma camiseta do AC/DC, ficaria até domingo com os pais, Letícia e Gilbei Turrel. Foram todos em uma Kombi, direto de Passo Fundo, em uma viagem de mais de quatro horas.
– A gente adora esse tipo de evento – afirma a mãe. – Em abril, a gente foi no Grito da Terra, na cidade de Concórdia, em Santa Catarina, que também é de acampar. Para a criançada é muito bom, tem várias oficinas, o Murilo sai abraçando todo mundo, e todo mundo é muito legal com ele. Não é algo que se encontra em qualquer lugar, sabe?
Boa parte do público do Morrostock é composta por uma massa que flutua por festivais do gênero e que privilegia contato com a natureza, música e atividades ao ar livre, como o Pira Rural (em Ibarama, a 250 quilômetros de Porto Alegre), o Acid Rock Festival (em Ijuí) e o gigante Psicodália. Muitos ali são veteranos da ripongagem – caso do analista de sistemas João Carlos Pezinne, 57, que não perde a oportunidade de fugir da cidade para o mato desde o clássico Cio da Terra, em 1982. No último final de semana, alugou uma Dobló para viajar com a mulher e os dois filhos desde Caxias do Sul.
– O Cio foi o precursor disso tudo, uma das experiências mais loucas da minha vida. Não lembro de muita coisa, para ser bem sincero (risos) – observa. – Mas é interessante notar que pouca coisa mudou no espírito de quem gosta desse tipo de festival. Está todo mundo pela paz, pelo amor, pela camaradagem, pela música. Ninguém se nega a emprestar nada, ninguém censura ninguém.
Mais jovem, Thaís Lopes, 27, é frequentadora do Psicodália e arrastou as amigas Regina Weber e Lia Procati, ambas com 27 anos, para o frege gaúcho.
– A gente veio muito pela música, mas estamos gostando de tudo. O astral é diferente, sempre tem alguma coisa acontecendo – disse Thaís, enquanto pintava o rosto das parceiras com uma maquiagem fluorescente que se tornou uma das marcas do festival, assim como os tradicionais adereços de flores e miçangas e a seminudez que parte do público adotou desde as primeiras horas.
Claro que o hedonismo presente no Morrostock pouco ou nada tem a ver com objetificação. Em cima dos palcos ou entre o público, no acampamento ou nas áreas de circulação, e especialmente curtindo um banho de rio, mulheres com os seios de fora eram parte da paisagem e foram tratadas exatamente desta forma: com naturalidade. Não havia, de qualquer parte, incentivo a qualquer comportamento que não o respeitoso.
Julia Adams, 29, de Porto Alegre, deixou primeiro a blusa na barraca para circular de sutiã. Depois do catártico show da banda curitibana Orquestra Friorenta no meio da tarde de sábado, com seus músicos exibindo vaginas e pênis artificiais, tomou coragem e ficou nua da cintura para cima. No domingo, enquanto a namorada nadava, Julia aproveitou o primeiro (e único) dia de sol para um providencial topless durante a apresentação dos argentinos Inmigrantes.
– Eu teria me pelado antes, mas estava com vergonha. Daí vi muitas meninas tirando o sutiã e nenhum cara mexia, ninguém ficava olhando como se fosse de outro mundo. Achei incrível, porque a gente está tão acostumada a ter medo e a se proteger que estranha quando tem esse nível de liberdade – conta. – Depois do show da Orquestra (Friorenta), comentei com a minha namorada que queria ficar mais à vontade. Quando eu vi, ela já estava pelada (risos).
No Morrostock, o respeito pela liberdade individual caminha junto com o incentivo à congregação. Não existe o apartheid das áreas vips e camarotes. Na incubadora de sonhos do Morro, homens e mulheres, héteros, homossexuais e transgêneros, jovens e velhos, todos têm acesso às mesmas bebidas e comidas e compartilham dos mesmos espaços para assistir aos shows e acampar (além de passarem também pelos mesmos perrengues).
– Eu acho que o Morro tem muito dessa utopia de compartilhamento de ideais, de insumos, de espaços, de sair da cidade e morar numa ecovila – diz Paulo Zé. – A cidade às vezes oprime o cara, então esse respiro que a gente dá pra galera é o que impulsiona essa utopia de buscar novas possibilidades. E esperamos que essa energia que emana daqui chegue o mais longe possível.