Às vésperas de completar 30 anos de carreira – que serão celebrados em 2017 –, Marisa Monte abriu o baú e começou a digitalizar toda a sua obra. Remexendo nesses arquivos analógicos, além das músicas de seus discos, a cantora e compositora topou com gravações avulsas que integraram projetos paralelos, trilhas de filmes e trabalhos de outros artistas – algumas até inéditas.
Esse achado acabou virando o material utilizado no derradeiro álbum do contrato da artista com a gravadora EMI – hoje adquirida pela Universal Music: Coleção reúne 13 faixas, garimpadas entre cerca de 40 canções registradas em quase três décadas. Essa origem meio bastarda e um tanto desconexa poderia resultar em uma obra sem personalidade e meramente comercial se não levasse a assinatura de uma das mais prestigiadas intérpretes da música brasileira, cuja trajetória foi consolidada justo graças a uma visão artística heterogênea e inquieta.
Desde a estreia profissional em 1987, a "cantora eclética" – como foi rotulada nesses primeiros tempos – sempre privilegiou a diversidade e o espírito colaborativo em seu trabalho. Coleção, portanto, encaixa-se com coerência e naturalidade na discografia de Marisa Monte.
– Quis fazer algo que fosse além de um "best of". Os próprios fãs já faziam seleções dessas músicas e me mostravam. O critério foi totalmente pessoal, intuitivo, subjetivo. Elas representam um arco de tempo grande e as relações que fui travando nesse percurso, que acabaram refletindo-se também no meu trabalho solo – explicou a vocalista em entrevista por telefone a Zero Hora.
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Coleção começa e termina com gemas da MPB regravadas especialmente para o projeto internacional Red Hot, que desde o final dos anos 1980 produz compilações em benefício das vítimas da Aids: a delicada Nu com a Minha Música, de Caetano Veloso, que Marisa registrou em 2011 ao lado de Rodrigo Amarante e Devendra Banhart, e a vigorosa interpretação de Waters of March, em que a cantora replica com o americano David Byrne o célebre duo Elis e Tom em Águas de Março – com o acréscimo de ruídos e distorções imprimindo contemporaneidade ao clássico. A coletânea recupera músicas integrantes de trilhas sonoras: Cama, parceria com Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown que fez parte do filme Era uma Vez (2008), de Breno Silveira, a antológica Carinhoso, do documentário Paulinho da Viola – Meu Tempo É Hoje (2003), e a bela Esqueça, do olvidável A Taça do Mundo É Nossa (2003), comédia da turma do Casseta & Planeta.
A parceria com o multi-instrumentista e produtor argentino Gustavo Santaolalla, criador do grupo Bajofondo e ganhador de dois Oscar, está representada em A Primeira Pedra e Fumando Espero – releitura em português do tango interpretada por Marisa em um show ao lado dos veteranos músicos da formação Café de los Maestros. Já a ligação com a samba portelense é lembrada em Dizem que o Amor, gravada no único disco do compositor Argemiro Patrocínio, e Volta, Meu Amor, do álbum Tudo Azul (1999), da Velha Guarda da Portela – ambos produzidos por Marisa.
O melhor de Coleção são os duetos femininos: a brasileira divide os vocais com a diva cabo-verdiana Cesaria Evora em uma memorável versão de É Doce Morrer no Mar, de Dorival Caymmi, com a fadista portuguesa Carminho em Chuva no Mar – encontros lusófonos abençoados pela água – e com a mexicana Julieta Venegas, entrelaçando português e espanhol na canção Ilusão.
Coleção não vai virar show, e Marisa Monte não sabe ainda quando lançará um novo disco de inéditas – o mais recente, O que Você Quer Saber de Verdade, é de 2011. Acostumada a grandes turnês, com produções ambiciosas e vistosas, a carioca de 48 anos anda se apresentando em cidades que nunca visitara antes, como Santiago do Chile e Montevidéu, com um espetáculo mais enxuto.
– Chamo de show de férias, pequeno, eu e quatro músicos, que me permite ir a qualquer lugar – resume Marisa.
Entrevista com a cantora Marisa Monte
Você acha que essas músicas serão escutadas como novidades?
Minha mãe ouviu no rádio Nu com a Minha Música e disse: "Que música linda essa nova, hein?" (risos). Pois é, essa música saiu no disco do Red Hot, que nem existe mais em formato físico... Hoje em dia, há esse desafio de você ser ouvido nesse mar de informações. Todo mundo consegue produzir um álbum e até lançar, mas não consegue ser ouvido.
Como você está lidando com esse novo cenário tecnológico que alterou a forma de produzir e consumir música?
Vejo como uma grande revolução, mas é um impacto geral, que atinge todas as áreas: o mundo todo se conectou. O problema é que a tecnologia anda mais rápido do que a regulamentação dessa nova economia do digital. Os taxistas reclamam do Uber, a hotelaria reclama do Airbnb (serviço online comunitário de reservas de acomodações), o pessoal das mídias digitais impactando na mídia escrita... Isso se reflete até na nossa percepção da política hoje! A música talvez tenha sido uma das primeiras áreas a sentirem isso. A grande discussão hoje no mundo todo é a regulamentação, já que a música representa grande parte do que circula na internet. Esse conteúdo tem de ser preservado, não pode ser uma relação predadora. Tem que haver transparência e uma distribuição justa dos recursos, porque essas empresas tecnológicas de mídia como o Google são as mais poderosas do mundo. Elas cresceram enquanto todos encolheram.
Na semana passada, você fez uma pequena apresentação de surpresa em uma escola ocupada por estudantes na Gávea, no Rio. Como você vê o atual momento político no país?
Vejo um grande vazio. Eu não me identifico com essa política partidária que está aí. Não há amor nisso. As pessoas querem saber se você é a favor ou contra o impeachment, e eu acho isso um pensamento muito primário, pouco profundo, muito reducionista, porque há milhões de considerações no meio disso. Há um desencanto geral com essa política partidária e a falta de representatividade. Tanto um lado quanto o outro não me satisfazem. Eu disse em uma entrevista que via beleza mesmo era nessas ocupações feitas por jovens, batalhando por educação. Acabei daí recebendo o convite feito por um dos estudantes dessa escola para gravar um depoimento. Fui lá e foi lindo, eles adoraram. Hoje, só vejo amor na micropolítica. Na macropolítica é só briga e polarização.