Um gravador Panasonic antigo, daqueles de fita cassete, é o fiel companheiro do jornalista cultural gaúcho Juarez Fonseca. Com ele, já realizou inúmeras entrevistas com nomes icônicos da música brasileira. Mesmo com o avanço da tecnologia, a ferramenta nunca deixou de ser a preferência do veterano repórter e, por isso, está sempre à mão, na gaveta da escrivaninha de seu escritório.
— Eu prefiro aqui toda a vida — afirma, apontando para o eletrônico portátil.
Desde o começo de sua carreira, no final dos anos 1960, Juarez atua assim: com um simples equipamento, mas munido de perguntas bem elaboradas, de quem é profundo conhecedor do que está falando, resultado do hábito de ler muito. Neste modus operandi, realizou bate-papos que vão de Luiz Gonzaga a Elis Regina, de Maria Bethânia a Gilberto Gil, de Roberto Carlos a Rita Lee. Todos estes nomes, além, de alguns outros, estão no livro Aquarela Brasileira: Entrevistas – Anos 1980 (L&PM Editores, 292 páginas).
O lançamento oficial ocorrerá na Feira do Livro de Porto Alegre, com sessão de autógrafos em 15 de novembro, às 19h. Porém, a obra já está à venda no site da editora. Focado nos anos 1980, este é o segundo dos quatro volumes planejados por Juarez, compilando parte de entrevistas realizadas ao longo dos seus 55 produtivos anos de carreira, sendo boa parte deles em Zero Hora.
Nesta continuação da viagem iniciada em 2021, com um livro que resgatava entrevistas dos anos 1970, é possível acompanhar, através das respostas dos artistas, a evolução do cenário musical, com visões curiosas, variadas e, diversas vezes, à frente do seu tempo. Também são levantadas questões sobre política, identidade, sexualidade, religião e sociedade.
Em paralelo, nas entrelinhas, a obra traz uma reflexão de como o jornalismo cultural se modificou com o decorrer das décadas: atualmente existem muito mais restrições em relação aos artistas, com boa parte do contato sendo feito através de assessorias de imprensa. Há, também, menos espaço físico para publicação de conversas extensas, restritas ao ambiente digital.
— Com o passar do tempo, foi sendo criado um distanciamento (entre repórter e artista). Boa parte das entrevistas que estão no livro eu fiz quando os artistas vinham a Porto Alegre e ficavam dias fazendo shows no Teatro Leopoldina, que depois virou da Ospa. Entrevistava no hotel, na redação ou na minha casa. Então, Gil, Elis, Bethânia vinham e ficavam cinco dias, uma semana. Era mais fácil, porque se tirava um dia para entrevistas. De alguns artistas, acabei virando amigo. Hoje em dia, não tem mais isso — salienta Juarez.
Outros tempos
Essa proximidade entre artista e repórter, que foi diminuindo com o tempo, ainda se fazia presente em abril de 1983. Naquele mês, Paulinho da Viola, ao desembarcar em Porto Alegre para três dias de shows, aceitou uma homenagem de Juarez e de outros jornalistas. O agrado ao prestigiado sambista foi uma tainha assada no bar Porta Larga, vizinho do prédio de Zero Hora, na Avenida Erico Verissimo — o músico não comia carne vermelha.
— Eu mesmo fui ao Mercado Público comprar o peixe — recorda o jornalista. — E o Paulinho da Viola não foi o único que foi até o Porta Larga. Tem foto minha com o João Bosco, em uma entrevista que fiz com ele no bar. Tem, também, com o Nelson Coelho de Castro. E vários outros artistas iam.
No caso de Paulinho da Viola, foi um sábado de festa no estabelecimento, com roda de samba e o próprio músico pegando um cavaquinho desafinado que ficava pendurado na parede do bar para dar mais som à farra. A foto que ilustra o livro mostra que a animação estava presente nas mesas do boteco, além de apresentar um Juarez barbudo e de cabelos compridos no canto da imagem. Na entrevista, realizada na redação do jornal, o carioca fala de música, mas também de cozinha e, até mesmo, de fraldas sujas.
Já Elis Regina, uma das grandes personagens da carreira de Juarez, tanto que ambos se tornaram amigos, concedeu a sua derradeira entrevista para o repórter em 1981. Ela está replicada no livro, bem como uma carta enviada por Elis ao amigo — a última. Nesta, deixou um até breve que nunca se cumpriu: "Até qualquer hora, prum abraço e um olho no olho. Amiga, Elis". Ela também assina com um "até sempre", o que, de fato, tornou-se uma realidade para Juarez, visto que as memórias dessa relação entre ambos o acompanha até hoje.
O fim dos discos
— Nos últimos anos, começou esse negócio da liquefação da música. Não tem mais disco, nenhum artista mais sai pelo Brasil para divulgar um disco — lamenta Juarez, que reforça que os trabalhos lançados diretamente nas plataformas de streaming devem ser chamados apenas de "álbuns", visto que o disco é o que se pega na mão, com capa, encarte e por aí vai.
Circulando pela casa do jornalista, o que mais se vê são livros, vinis e CDs, que adornam vários cômodos, todos muito bem organizados. É uma coleção invejável, com itens de diversas décadas, que percorrem a história da música brasileira e mundial e, também, a de Juarez, que esteve frente a frente com boa parte dos artistas que ocupam as suas prateleiras.
E é assim que o jornalista gosta de consumir música: na mídia física. Sente satisfação em ter o conteúdo em sua posse, não em uma nuvem ou online. Por isso, faz questão de publicar o livro impresso, que remonta às suas matérias, que saíam, muitas vezes, em pomposas quatro páginas de jornal nas décadas passadas.
Das 32 entrevistas reunidas neste volume — após um trabalho árduo de seleção —, uma é inédita, com Rogério Duarte, e três são bônus: com os músicos argentinos Mercedes Sosa e Atahualpa Yupanqui e com o cineasta Glauber Rocha. Para conseguir conversar com este último, o repórter foi bater na porta da casa dele, no Rio de Janeiro, pedindo para fazer uma matéria. Ele topou.
Mesmo com um leque impressionante de artistas entrevistados, Juarez lamenta dois com os quais nunca conversou. Um é João Gilberto, que não dava entrevista para ninguém, tirando uma lendária para a Veja, e o outro, Vinicius de Moraes:
— Este eu não entrevistei por idiota que fui, porque eu poderia. Foi uma coisa de babaca. Naquela época, o Vinicius estava na fase com o Toquinho, um sucesso popular. Ele bebia muito e tinha uma mulher por mês. Eu achava o cabelo dele gorduroso, porque não lavava. Aí eu não dava bola para ele. Quando ele morreu, fiz a matéria de despedida. Fui babaca.
Sobre a sua entrevista favorita de Aquarela Brasileira, Juarez responde:
— Não tem como escolher uma. Poderia dizer que é o Dorival Caymmi, que é a Nara Leão, que é o Luiz Gonzaga, que é o Gilberto Gil, que é a Rita Lee, mas não consigo. Um pai não escolhe um filho para gostar mais.