A literatura negra no Brasil vive um momento especial, com uma profusão de autores ganhando espaço. Prova disso é que a 69ª Feira do Livro de Porto Alegre teve dois escritores negros protagonizando uma das principais atrações. O encontro entre Itamar Vieira Junior e Jeferson Tenório, vencedores do Prêmio Jabuti consecutivamente, em 2020 e 2021, atraiu centenas de pessoas e formou filas gigantescas para autógrafos na Praça da Alfândega.
Crítico literário e professor no curso de Especialização em Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Luiz Mauricio Azevedo, estudioso da produção literária afro-brasileira, reconhece que o momento é de comemoração, mas só para que, logo adiante, volte-se a fazer cobranças pertinentes.
— Como o Brasil é cheio de problemas, às vezes a gente perde a capacidade de reconhecer o território conquistado, de ver que temos dois autores negros como destaque de uma Feira do Livro que demorou a introduzir autores negros para seu sistema. Podemos comemorar agora para depois exigir mais coisas, como esta: temos que ter na Feira do Livro de Porto Alegre uma patrona negra.
Autor de Estética e Raça: Ensaios sobre a Literatura Negra (Sulina, 2021), ele também defende que é justamente por causa do maior número de escritores negros publicando seus livros e participando de eventos literários que chegou a hora de amadurecer o olhar sobre a literatura de autoria negra. Começando por entender que um autor negro não precisa falar sobre negritude ou outros temas comumente relacionados à cultura afro para estar inserido no conjunto chamado de literatura negra.
— Não existe nada que seja, por definição, parte significativa da literatura negra. Para ser literatura negra tem que falar de escravidão? Não é verdade. Estamos vivendo a sensação de que autores negros podem escrever sobre quaisquer assuntos que queiram escrever. Tanto que agora estamos vivendo uma onda do afrofuturismo (movimento cultural que aposta na ficção científica para imaginar futuros possíveis para os negros), porque estão sentindo que podem escrever sobre tudo, e isso é fundamental para uma vida autoral adulta.
E escrever sobre a realidade excruciante de negros que foram subjugados no passado e ainda sofrem os efeitos nocivos da escravidão não é garantia de que resultará em boa literatura, argumenta Azevedo. Em sua avaliação, a literatura de autoria negra já conquistou espaço suficiente para ser analisada por seu conteúdo estético.
— O racismo estrutural faz parte não só da crítica literária brasileira como da condescendência dirigida às obras de autoria negra que já provaram seu valor há muito tempo. A gente não precisa mais defender a literatura negra por bom-mocismo. A literatura negra é muito boa. O maior autor brasileiro é negro, Machado de Assis. Não precisamos ter medo de dizer que um livro específico de uma pessoa negra é ruim. Vivemos um momento comparado às folhas de uma árvore, que são muitas, sendo algumas ofuscadas pelas outras. Agora a gente pode se dar o luxo de separar o joio do trigo.
Seis livros essenciais de autores negros
Confira, abaixo, obras destacadas por Luiz Mauricio Azevedo, sendo três escritas originalmente em português e três em inglês, mas disponíveis em tradução no Brasil. Os comentários são do professor e crítico literário.
Essa Dama Bate Bué! (2021), de Yara Nakahanda Monteiro
Editora Todavia
"O Brasil não tem boas relações culturais com a África. A gente fetichiza tudo e acha que o continente é uma terra estranha. Para quem quer entender melhor a África, nada melhor do que abrir um livro de história. Yara é uma autora que deixa claro que, para além dos problemas que costumamos pensar, existem nossos problemas pessoais. É a história de uma personagem que busca encontrar sua mãe e, a partir disso, conta a história de conflitos de Angola. E começamos a entender que as guerras históricas e sociais são uma maneira de pensar nas guerras íntimas de cada um".
Sonhei com o Anjo da Guarda o Resto da Noite (2022), de Ricardo Aleixo
Editora Todavia
"É um conjunto de fragmentos que formam uma ideia de memória sobre a vida do autor. É quase autobiografia. E ele conta histórias que ficaram escondidas. Conta de forma muito tocante como perdeu a visão de um olho. Há uma história linda envolvendo violência brasileira, futebol e capacidade de enxergar o mundo. O que ele faz com o episódio da perda da visão é uma das coisas mais lindas que já vi na história da literatura. A transposição de uma drama, de um trauma, para uma pequena obra de arte".
Mata Doce (2023), de Luciany Aparecida
Editora Alfaguara
"A Luciany Aparecida vinha de uma experiência de assinaturas estéticas, ou seja, ela escrevia livros com outros nomes. Eu estava curioso para ver o que aconteceria com a Luciany quando ela chegasse a uma grande editora e se a literatura dela iria se transformar. E o resultado, brilhante, é Mata Doce. É importante que as pessoas leiam e entendam que não é preciso fazer militância cega na literatura. A gente já pode falar de nossa negritude sem sacrificar nada. Um Brasil que encontra a si mesmo está em Mata Doce".
Homem Invisível (1952), de Ralph Ellison
Editora José Olympio
"Conta a história de um sujeito que percebe que é invisível porque as pessoas, quando olham para ele, não enxergam o que ele é. Só enxergam o que elas têm na cabeça a respeito do negro. Esse é um dos livros favoritos de Barack Obama. E isso, por si só, dá mais gosto à história. Obama diz que esse livro foi fundamental para sua formação cultural e para o seu desejo de ser um homem negro. Foi a primeira vez que um negro ganhou o National Book Award, que era o prêmio mais importante da época, e ganhou em cima de Ernest Hemingway, que era o escritor mais importante na época."
O Olho Mais Azul (1970), de Toni Morrison
Editora Companhia das Letras
"Uma história incrível de como uma pessoa pode desejar ser branca e encontrar pessoas dispostas a enganá-la nesse intuito, levando-a para a morte. É uma tragédia sobre como a branquitude pode destruir a vida de pessoas negras, escrita por Toni Morrison, que é simplesmente Nobel de Literatura, e isso já dá conta de um monte de coisas".
O Reformatório Nickel (2019), de Colson Whitehead
Editora Harper Collins
"Com este livro, Colson Whitehead ganhou seu segundo Prêmio Pulitzer. Ele é um autor jovem, negro, americano, que consegue manipular toda a tradição negra e juntar com a pegada da literatura contemporânea, fazendo uma linguagem que as pessoas conseguem entender e que fornece reflexões psicanalíticas profundas sobre o que é ser um indivíduo em conflito com o mundo que o rodeia. É uma história baseada em fatos reais sobre o que acontece quando um grupo de pessoas descobre que sua história de opressão é a história de opressão de um país inteiro".