
Por Jandiro Adriano Koch*
No Vale do Taquari, a literatura produzida na região não tem despertado muito os ânimos. Exceções existem. Há décadas, um título arrancou muita gente do chão. Baseada na realidade, a narrativa apresenta as consequências funestas para uma mulher interiorana, que, nas primeiras décadas do século 20, decide divergir da família ao casar com um rapaz de crença religiosa diferente da sua.
O casamento misto por religião era considerado uma aberração. Abandono do grupo familiar e a exclusão da comunidade podiam ser decorrências. Nesse caso, o marido falece repentinamente. Desamparo total da parte remanescente. Sem alimentos, na dita "prostituição", é acusada de loucura, tem sua prole retirada e perde os direitos civis por interdição.
Por infelicidade, a tentativa de costurar essa história com a de Malvina, obra aqui destacada, restou aniquilada. Quem escreveu o outro livro, por razões incertas, resolveu desmentir a origem em fatos verídicos. Há licenças poéticas, mas poucas dúvidas sobre uma sucessão de eventos reais de conhecimento público. A mudança de posicionamento indica o quanto as violências contra as mulheres continuam a produzir seus efeitos mesmo que os fatos tenham ocorrido tanto tempo atrás. Faz parte da gestão (in)voluntária do "silenciamento".
Esse contornar atinente às existências das mulheres também intriga em relação à vida da professora Inácia de Campos Leão, esposa do "incompreendido", mas certamente "machista" Qorpo-Santo (1829-1883). Enquanto o dramaturgo entrou para a história, a companheira, depois de ter pedido a separação, de ter ficado com os filhos e de ter lutado para administrar os bens da família, não foi vista como ponto central. Mesmo que ele tenha usado sua verborragia de forma ininterrupta para atacá-la diretamente e, na imagem do feminino e de outras mulheres, de forma indireta. Cerne da biografia e da produção textual, ela foi tornada apêndice.
Com tantos desvios, raramente no interior do Estado surge um livro como Malvina (Libélula Editorial, 2023), lançado por Laura Peixoto. A autora reconstitui o período histórico entre o final do século 19 e as duas primeiras décadas do século seguinte, com enfoque em um núcleo rural do RS — hoje Cruzeiro do Sul, município no Vale do Taquari. Além de reimaginar uma antiga vila a partir da leitura de diversos historiadores regionais, ela a percebe pelos olhos da docente Júlia Malvina Hailliot Tavares (1866-1939).
Malvina é uma figura histórica sobre a qual existem esforços acadêmicos como o de Carlos Dias, que resultou no livro Mulheres em Cena: as Trajetórias de Ana Aurora e Malvina no Limiar do Século 20. Apesar de partes nebulosas, de incertezas diante da força da lenda, é considerada protofeminista e simpatizante do anarquismo. Por dispensar a palmatória, uma educadora libertária. Empolgada, Laura Peixoto a transforma em uma quase heroína — não fosse o dia a dia.
A região bucólica, distante um bom tempo de trajeto fluvial de Porto Alegre, além de abrigar a protagonista do livro, foi berçário de alguns dos nomes fortes ligados ao movimento operário sul-rio-grandense. Malvina foi professora de Henrique Augusto Martins (1888-1918), que usava o codinome Cecílio Vilar, e de Espertirina Martins (1902-1942). Em 1917, dizem que Espertirina jogou um buquê de flores, dentro do qual fora escondida uma bomba, na Brigada Militar, que reprimia o movimento reivindicatório do operariado porto-alegrense.
Até que ponto o pensamento da preceptora os influenciou? Apesar de ter entrevistado mais de 20 pessoas, de ter se amparado de forma muito eficiente para reconstituir cenário, linguagem e acontecimentos periféricos, a escritora confirma o largo uso da ficção. Os olhos de Laura Peixoto funcionam como lentes de contato para os olhos de Malvina.
O texto apresenta certas curvaturas, nessas em que os carros precisam baixar a velocidade para não se perderem no caminho. O deslocamento temporal e a peculiaridade geográfica são sinuosidades constantes. Configuram um desconhecido que amedronta, mas instiga a prosseguir. As muitas sinalizações em relação às características psicológicas dos personagens, por sua vez, quase mostram demasiado. De toda a forma, para voltar, leitores estarão longe demais.
Não é difícil chegar em Malvina. Junto dela, a Reni, a Maurilha, a Geraldina, a Abrelina, a Lucídia. No mesmo cemitério em que estão sepultadas, há várias outras... O que têm a dizer as mulheres enterradas nas vilas?
* Escritor, autor de, entre outros, O Gaúcho Era Gay? Mas Bah! – 1737-1939 (Estúdio-MAR Edições, 2023)
QUEM FOI
Julia Malvina Hailliot Tavares (1866-1939) foi a primeira professora estadual e a primeira a lecionar em uma turma mista na antiga colônia de São Gabriel de Lajeado, no Vale do Taquari. Natural de uma família de imigrantes franceses estabelecida em Encruzilhada do Sul, é avó do jornalista Flávio Tavares. Considerada anarquista e libertária, exerceu influência na sociedade da época, inclusive entre as primeiras organizações proletárias locais. Além de Encruzilhada, viveu em Porto Alegre e na região onde hoje é o município de Cruzeiro do Sul.

O LIVRO
MALVINA
De Laura Peixoto
Libélula Editorial, 260 páginas, R$ 40 (detalhes no Instagram, em @libelulalivros)


